O balanço das árvores na tarde nublada e a autoridade dos tambores sobre as vozes marcaram o início de uma viagem pela região central de Porto Alegre. Imersos na cápsula do tempo proposta por nosso anfitrião, descemos ladeiras de ruas largas com casas imponentes e fomos até um castelo, onde viveu, por que não, a Rapunzel da capital gaúcha. Foram descritas ruas com calçadas de pedra e construções antigas, um local com cheiros não muito agradáveis no século 21 que lembravam o século 19, quando a água não era encanada e era buscada no mesmo rio pelo qual chegavam novos escravos.
A riqueza de detalhes das histórias compôs o enredo do primeiro Tour Porto Alegre Mal-Assombrada com audiodescrição, oferecido para cerca de 45 pessoas com deficiência visual, no primeiro domingo primaveril de 2022. Eu, repórter cega, acompanhei atentamente o que foi dito e assisti da mesma forma o silêncio, as piadas ou reflexões dos participantes, que mostraram interesse do início ao fim do passeio, com duração de três horas e meia.
O toque do tambor retumbava no solo em que tantos escravos tombaram após o enforcamento em um local que se chamava, estranhamente, Praça da Harmonia, atualmente Brigadeiro Sampaio. O passeio seguiu com um aperto no peito e emoções, principalmente ao toque do sino da Igreja das Dores, que hoje é basílica e por muito tempo não teve sua obra concluída. Dizem que se deveu a uma maldição de um escravo que trabalhou na construção do templo e foi acusado de furto de uma pedra preciosa no local. Morreu na forca. Será que os senhores foram perdoados por seus atos?
A noite caiu e a linha do tempo avançou à medida que os aromas distintos se misturavam ao barulho dos veículos, lembrando que apesar de encapsulados na imaginação, estávamos a centenas de anos à frente dos acontecimentos ali detalhados. Porém, o desabono dos fatos e a exclusão de minorias seguem como feridas do passado e pioradas no presente. Isso sem falar do machismo, antes normalizado, agora combatido.
Como surgiu a ideia
A ideia para o tour com audiodescrição surgiu pouco antes do último Dia dos Namorados, com o interesse da estudante de 19 anos Aurora Schwartz Schmitt em presentear a namorada, a também estudante Bárbara Lopes, 18, com o passeio. Como a família de Aurora tem envolvimento com audiodescrição desde sua infância, a jovem sugeriu aos pais tornar a caminhada acessível aos deficientes visuais.
Um mês após o passeio das jovens, a audiodescritora Letícia Schwartz, 49, junto ao esposo, que por acaso foi meu guia durante o evento, o programador Gabriel Bohrer Schmitt, 49, repetiram o percurso, não sem antes reunirem uma equipe para organizar o passeio com os cerca de 45 deficientes visuais. Que terminou em uma grande confraternização.