Das 10,8 mil sinaleiras de Porto Alegre, somente 1,7% delas — 186 semáforos — têm o sinal sonoro para auxiliar deficientes visuais na travessia. Poderia começar assim a lista de obstáculos que pessoas com deficiência visual enfrentam para se locomover na 12ª maior capital do país.
Atualmente, cerca de 170 mil moradores de Porto Alegre convivem com alguma deficiência, conforme estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E eu, Cris Lopes, 33 anos, sou uma dessas pessoas. Cheguei em Porto Alegre há nove anos, vinda de Itaqui, cidade com pouco mais de 40 mil habitantes, na Fronteira Oeste, filha do meio em uma família na qual os três filhos possuem deficiência visual. A busca pela autonomia na locomoção é um desafio diário. Seja para trabalhar, estudar ou aproveitar a cidade, o gasto com aplicativos de transporte é garantido.
Com a inauguração do novo trecho da orla do Guaíba, em outubro de 2021, uma afirmação em notícia publicada no site da prefeitura chamou minha atenção. No release, o Executivo municipal trazia a informação de que o novo trecho da Orla fora aprovado por pessoas com deficiência durante teste de acessibilidade.
Mas como eu faço para vencer os pouco mais de dois quilômetros que separam a minha casa, no bairro Menino Deus, da nova atração da Capital? São pouco mais de 20 minutos a pé, mas que só são possíveis de serem percorridos com o auxílio de amigos ou a ajuda de quem passa por mim nos cruzamentos. Como faço pra chegar lá sozinha?
Parar tirar a prova, decidimos fazer o percurso do meu local de trabalho, na esquina das avenidas Erico Verissimo e Ipiranga, também no bairro Menino Deus, até o trecho 3 da Orla. Logo no começo do trajeto, um veículo estava parado sobre a calçada, impedindo a travessia — infração gravíssima, segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Na via seguinte, uma placa de sinalização que poderia facilmente ser removida do lugar, além do acúmulo de resíduos de uma construção.
Soma-se a isso a ausência de acessibilidade na proximidade do Arroio Dilúvio, além de falhas no pequeno trecho com piso tátil até o ponto de chegada, que também não obedecia a disposições das normativas municipais, federais e da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Coordenadora dos estudos de trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio Grande do Sul, a advogada Rochane Ponzi lembra que qualquer pessoa pode requerer junto aos órgãos competentes a aplicação da Lei Brasileira de Inclusão, que normatiza e discorre sobre as regras de acessibilidade, acionando o Judiciário por meio do Ministério Público.
Cobrar das autoridades competentes mais acessibilidade nas cidades contemporâneas também é apontada pelo professor da Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e PhD em Transportes Luiz Afonso Senna como uma das maneiras de buscar a inclusão da medida nas políticas públicas.
— Sem planejamento, que inclui também a identificação das fontes de financiamento para a realização e manutenção das obras e melhorias, as cidades brasileiras continuarão a constar nas listas de inacessíveis e que não entregam aos cidadãos questões mínimas do que se considera cidadania — reflete.
Ativista da causa de mulheres com deficiência, Carol Santos vive em Porto Alegre, é usuária de cadeira de rodas e encontra dificuldades para realizar com independência atividades cotidianas, visto que o transporte público não tem a frota completamente acessível.
— O Estado não nos permite viver plenamente por falta de políticas públicas — reclama Carol, que é ex-presidente da ONG Inclusivass.
O tamanho da tarefa que é vencer cruzamentos de vias em Porto Alegre transparece nos números. A cidade tem 8,1 mil cruzamentos cadastrados, conforme o secretário municipal de Obras e Infraestrutura, André Flores. Há 2 mil rampas para acesso de cadeiras de rodas, representando 24% do total de esquinas que deveriam oferecer acessibilidade, o que para um usuário de cadeira de rodas ou com mobilidade reduzida gera uma barreira gigantesca.
Bom exemplo
Uberlândia, em Minas Gerais, tornou o transporte público 100% acessível e tem essa como uma das principais políticas públicas: a cidade não inicia obras, públicas ou privadas, sem antes verificar se os projetos já cumprem a exigência desse item.
Depois que o processo todo se inicia, não tem mais volta. E o positivo é que as pessoas vão percebendo que a promoção da acessibilidade não atende supostamente a uma minoria, mas a todos que podem um dia ter sua mobilidade reduzida temporária ou permanentemente
IDARI ALVES DA SILVA
Diretor de Acessibilidade da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano de Uberlândia
— Não é um paraíso porque ainda precisamos melhorar algumas coisas, mas, atualmente, até projetos nos distritos, sejam eles públicos ou privados, têm que pensar na acessibilidade — declara Idari Alves da Silva, diretor de Acessibilidade da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano de Uberlândia.
Com deficiência auditiva e paraplegia devido a um problema genético, Idari crê que o município só se tornou referência no assunto quando, há cerca de 20 anos, passou a encarar o tema como política pública permanente, e não “como projeto de um ou outro governo”.
— Depois que o processo todo se inicia, não tem mais volta. E o positivo é que as pessoas vão percebendo que a promoção da acessibilidade não atende supostamente a uma minoria, mas a todos que podem um dia ter sua mobilidade reduzida temporária ou permanentemente — explica.
O que diz a prefeitura
Os secretários municipais de Mobilidade, Adão de Castro Júnior, e de Obras e Infraestrutura, André Flores, ressaltam que os novos empreendimentos e grandes intervenções da cidade são pensados para terem acessibilidade não só para pessoas com deficiência, mas também para quem tem mobilidade reduzida e idosos. No entanto, reconhecem os problemas de acessibilidade existentes na Capital como uma questão antiga a ser solucionada.
— É uma situação que a gente enfrenta em quase todo o Brasil e não é simples resolver. Posso ver que é um passivo que as cidades têm, algumas mais e outras menos — declara o secretário de Mobilidade.
Não tenho problemas em dizer que nosso número de fiscais hoje é pequeno e, por isso, o trabalho está um pouco prejudicado, já que trabalhamos, no momento, sob demanda. Hoje temos a ideia de ampliar essa questão, até porque se a gente esperar uma cidade acessível somente a partir das obras que vêm sendo feitas, esse processo vai demorar 20 ou 30 anos
ADÃO DE CASTRO JÚNIOR
Secretário municipal de Mobilidade
Conforme o plano municipal de acessibilidade de Porto Alegre, vigente há 11 anos, a responsabilidade pela colocação de pisos podotáteis nas calçadas é de cada proprietário. Os donos de imóveis privados que desejarem saber as normas corretas para a colocação do piso e da construção de rampas na altura e inclinação adequadas podem procurar a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura, pelo telefone (51) 3289-8836, ou então a Secretaria Municipal de Mobilidade Urbana, no número (51) 3289-3902.
— Nas obras do Quadrilátero Central, a prefeitura optou por colocar os pisos direcionais e alertas nas vias. Via de regra, os proprietários que precisam fazer essa adaptação e os projetos de reforma ou construção precisam ser devidamente aprovados com as regras de acessibilidade vigentes na legislação — esclarece Flores.
Atualmente, a Secretaria de Mobilidade Urbana fiscaliza a implementação desse tipo de obra em Porto Alegre, mas o titular da pasta admite defasagem de recursos humanos para vistoria minuciosa dos trabalhos.
— Não tenho problemas em dizer que nosso número de fiscais hoje é pequeno e, por isso, o trabalho está um pouco prejudicado, já que trabalhamos, no momento, sob demanda. Hoje temos a ideia de ampliar essa questão, até porque se a gente esperar uma cidade acessível somente a partir das obras que vêm sendo feitas, esse processo vai demorar 20 ou 30 anos — esclarece Castro Júnior.
O baixo número de semáforos com botoeiras sonoras faz parte desse passivo que Porto Alegre e outras tantas cidades do país enfrentam, segundo o secretário de Mobilidade Urbana. A intensão é ampliar o número de sinaleiras acessíveis, principalmente na área central, onde há maior movimentação de público.
— Nosso trabalho é mais sob demanda, fazendo a análise após a solicitação. Nos locais em que não há botoeira, entendeu-se que não havia a necessidade, devido ao tempo semafórico. Nessa questão faltou a sensibilidade para a necessidade do deficiente visual, que não foi atendida — pondera Castro Júnior.
*Essa reportagem foi produzida em parceria com o Jornal do Almoço, da RBSTV, e mostra as dificuldade de quem tem deficiência visual para chegar até a Orla e também para aproveitar o espaço.