Por Orestes de Andrade Júnior
Jornalista, pós-graduado em Liderança, Inovação e Gestão 3.0 (PUCRS), ex-presidente da TVE, ex-secretário de Comunicação da prefeitura da Capital
Na mitologia grega, o titã Prometeu é aquele que vê antes. Seu irmão Epimeteu é o que vê depois. Todos nós queremos ser Prometeu. Mas ver antes não é tão simples como parece. Nem sempre enxergamos o que está à nossa frente. Isso tem a ver com o funcionamento do nosso cérebro, que tem regras próprias.
Temos o que os psicólogos chamam de “viés da confirmação”, ou seja, enxergamos apenas o que queremos ver. E acreditamos nisso. Vemos as coisas como nós somos. Com a nossa história, nosso ponto de vista, educação, valores e experiências. É por isso que ninguém é imparcial. Cada um decide com base na sua visão pessoal de mundo. Não significa que não possamos ser isentos, o que é diferente de ser imparcial (não ter lado). Isenção tem a ver com ser livre e independente para decidir.
Pois bem, vamos ao que interessa. A revitalização do Cais Mauá, por meio de uma concessão à iniciativa privada, é o tema mais complexo do ano. Sendo difícil e complicado, o que nosso cérebro faz? Simplifica. Um erro comum de quem acha que enxerga “a verdade” é despejar um monte de detalhes e fatos sobre quem quer convencer. Quando isso acontece, porém, nosso cérebro simplesmente filtra o excesso de informações. Muitas vezes, desliga.
É o que está acontecendo no debate que já foi tema de vários artigos em GZH e em Zero Hora, sobretudo no caderno DOC, e é discutido em rodas de conversas que vai das universidades aos bares da Capital. O problema é que polarizou, virou Gre-Nal: ou se é contra, ou a favor. Há vários bons argumentos de ambos os lados para o futuro do local que está degradado e isolado das pessoas há décadas. Em geral, as ideias são divergentes na forma (deve ser público ou privado?). Mas quero destacar um consenso: tanto quem é contra ou a favor à revitalização do Cais Mauá fala em nome de todos. Ou seja: os dois lados contrários dizem que o Cais tem de ser de todos.
O projeto alternativo ao do governo estadual foi elaborado pelo Coletivo Cais Cultural Já, formatado em conjunto com professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em suma, a proposta defende o uso e ocupação do Cais, em especial dos armazéns, por “atividade cultural rica, diversificada e plural”. Em uma frase: o “todos” da proposta desse coletivo é ocupar o Cais com o setor cultural.
O projeto de revitalização oficial, que em breve terá o edital de concessão aberto, foi encomendado há cerca de um ano pelo governo do Estado ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com a seleção do Consórcio Revitaliza, reunindo oito empresas das mais variadas especialidades. O modelo sugerido é uma parceria público-privada (PPP) com contraprestação imobiliária, isto é, as docas serão utilizadas (“em permuta”) como pagamento por obras, serviços, urbanização do entorno e construção e operação de novo sistema de contenção de enchentes, além de manutenção, limpeza, vigilância e atividades econômicas relacionadas aos mais diversos setores. O investimento projetado é superior a R$ 1 bilhão. Após 30 anos, os armazéns voltam ao controle do Estado.
O que mais chama a atenção nessa proposta é que – além de contemplar o setor cultural – o planejamento inclui importantes ações na área da economia criativa, tecnologia, inovação, lazer, entretenimento, gastronomia, esportes náuticos, hotelaria, comércio e artesanato, que trarão benefícios para 15 mil visitantes por dia. A proposta valoriza a beleza natural e histórica do Cais Mauá e oferece novas oportunidades em vários setores para a população de Porto Alegre e da Região Metropolitana – com a vantagem extra de atrair turistas.
Olha que interessante. O “todos” (setor cultural) da proposta alternativa do Coletivo Cais Cultural Já está devidamente contemplado no projeto atual, com acréscimos de outras áreas. Para quem vai utilizar o novo espaço, as duas propostas são convergentes – e não opostas! E uma entrega (bem) mais do que a outra. Nem vamos falar da sustentabilidade financeira. O plano oficial do governo estadual também atende a reivindicações dos coletivos, como o acesso público e gratuito ao local e o incentivo à mobilidade por meio de ciclovias, equipamentos de mobilidade sustentáveis e caminhadas. Mais do que isso: prevê a derrubada do malfadado muro, que há décadas aparta o Guaíba dos porto-alegrenses e gaúchos.
Ter esperança é confiar no que ainda não vemos. A desconfiança só se aplica ao desconhecido. Não é o caso, já que está tudo desenhado, de modo transparente. Basta enxergar melhor do que um caranguejo para ser como Prometeu e vermos o futuro antes dos outros.