Entre seis pistas de uma das avenidas mais barulhentas da cidade, ali naquela água escura de cheiro podre, ainda tem fauna no Arroio Dilúvio. As aves são as mais fáceis de avistar: pesquisa de uma ONG contou 35 espécies ao longo da Ipiranga há alguns anos. Mas há também tartarugas e cágados, e um projeto da Universidade Federal do RS (UFRGS) pretende identificar os tipos de peixes que habitam o arroio.
Os remanescentes são as espécies que conseguiram resistir à poluição – pelo menos por enquanto.
— O Dilúvio tinha fauna tão rica como qualquer outro arroio que drena para o Guaíba, mas que, em função da ocupação urbana e da retificação do leito, foi sofrendo com perda em biodiversidade — destaca Nelson Ferreira Fontoura, diretor do Instituto do Meio Ambiente (IMA) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Ao longo de seu crescimento, Porto Alegre foi parando de tratar o Dilúvio como um arroio. Mudou seu traçado, concretou suas margens, transformou-o no canal de macrodrenagem de uma das regiões mais adensadas da cidade. Também passou a jogar lá dentro a sujeira que não sabia onde enfiar: esgoto cloacal e a rede mista, que é a água da chuva misturada a esgoto doméstico.
Justamente o esgoto é o principal responsável por episódios de mortandade de peixes. Eles morrem por falta de oxigênio, explica Fontoura, o que normalmente ocorre de noite e no verão. Isso porque o metabolismo de organismos como bactérias se eleva com o calor, consumindo mais oxigênio, e, durante a noite, as algas não fazem fotossíntese para equilibrar a quantidade de O2 .
As últimas medições da qualidade da água realizada pelo IMA ocorreram no mesmo mês em que houve aparição de peixes mortos, em novembro de 2019. Em um dos cinco pontos, perto da foz (no cruzamento com a Avenida Praia de Belas), em razão da poluição, havia quantidade de oxigênio dissolvido mais baixa, de 3,6 miligramas por litro. Para referência, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) considera o valor ideal de oxigênio dissolvido para um viveiro de peixes acima de cinco miligramas por litro.
Mas quem não está necessariamente dentro da água também sofre com a poluição, salienta a bióloga Lisiane Becker, coordenadora do Instituto Mira-Serra. Aves e tartarugas podem ser afetadas.
Para que deixe de ser o valão de Porto Alegre, precisa resolver isso. O Dilúvio é um arroio na UTI, mas, se dermos tratamento adequado, tem condições de sobreviver
NELSON FERREIRA FONTOURA
Diretor do IMA da PUCRS
— Não se passa impune, pode ter patologias que vão matar a longo prazo, interferir na reprodução, pode ter desdobramento em outra geração — enumera.
O caminho para resolver esse problema passa por investir em saneamento básico e regularização fundiária, segundo especialistas – parte do esgoto que ingressa no Dilúvio não passa por separação cloacal, e há outras fontes que sequer são mapeadas pela prefeitura, provenientes de ligações feitas em áreas irregulares, não contempladas com rede de esgoto.
— Para que deixe de ser o valão de Porto Alegre, precisa resolver isso. O Dilúvio é um arroio na UTI, mas, se dermos tratamento adequado, tem condições de sobreviver — ressalta Fontoura.
Garça-branca-grande é a ave mais numerosa
Em uma manhã de sexta-feira no início do mês, com o auxílio do professor Nelson Fontoura, a reportagem avistou 11 espécies de aves junto ao Arroio Dilúvio, no cruzamento da Avenida Ipiranga com a Edvaldo Pereira Paiva. As mais numerosas são as garças-brancas-grandes, e também há garças-brancas-pequenas. Mais do que o tamanho, é possível distingui-las pela cor do bico (amarela nas grandes, preta nas pequenas) e das patas (a pequena tem a ponta amarela). Muitas ficam perto da foz com o Guaíba esperando algum peixe dar as caras na superfície.
Já os biguás chegam a submergir no Dilúvio para pescar. Essa espécie não tem a glândula uropigiana, que torna as penas impermeáveis, e isso facilita os mergulhos para se alimentar. Também preto, com um bico comprido e pontudo, um maçarico-de-cara-pelada foi flagrado pelo fotógrafo Jefferson Botega dando um rasante sobre a água.
Diversidade maior junto à foz
Nas margens do Dilúvio, havia urubus-da-cabeça-preta e carcarás à espreita para ver se sobrava algum resto de peixe. Perto da ecobarreira, quatro urubus e um carcará dividiam uma carcaça de tilápia.
— Junto à foz do Dilúvio com o Guaíba, essas áreas mais preservadas, temos diversidade maior, principalmente de aves, que vêm do Delta do Jacuí e do Guaíba em si usando o Dilúvio como oportunidade de alimentação — afirma Fontoura.
Achei surpreendente que, mesmo naquele estágio de degradação, fosse possível registrar a presença de tantos animais
LISIANE BECKER
Bióloga, coordenadora do Mira-Serra
Também foram flagrados nas margens do arroio sabiá-laranjeira, franguinho-d’água, joão-de-barro, cardeal e quero-queros. Esse último é um exemplo de espécie que pode utilizar as margens do Dilúvio cobertas com gramíneas para fazer seu ninho.
Em um estudo realizado de abril a novembro de 2007, o Instituto Mira-Serra encontrou 35 espécies nos pontos antropizados (cujas características originais foram alteradas), sendo o top 10 composto por: pardal, garça-grande, joão-de-barro, rolinha-roxa, sabiá-laranjeira, pombo-doméstico, bem-te-vi, andorinha-grande, anu-preto e cambacica.
— Achei surpreendente que, mesmo naquele estágio de degradação, fosse possível registrar a presença de tantos animais — comenta a bióloga Lisiane Becker, coordenadora do Mira-Serra.
Lisiane se entristeceu com alterações potencialmente negativas para a avifauna que ocorreram desde essa pesquisa. Citou como exemplo a obra de restauração nos taludes que, além de suprimir algumas árvores, não favoreceu o processo de “filtragem”, característico das áreas marginais dos cursos hídricos. Para ela, gestores municipais e a maioria da população desconsideram a função ecológica e microclimática, que “deveria ser mantida e incrementada”:
— Até aqui, nada foi feito para a melhoria da qualidade ambiental (árvores, arbustos e gramíneas foram suprimidas e foi mantido o estado de poluição das águas) ou para a sensibilização da população relativa à riqueza da avifauna oculta para a grande maioria dos cidadãos, bem como do significado de sua presença ali.
Estudo da UFRGS deve identificar espécies de peixes
Jundiá e cascudo-preto são algumas das espécies de peixes já avistadas no Dilúvio, além de tilápia, um peixe trazido da África para piscicultura que acabou se espalhando pela região. Também é muito comum aparecer outro conhecido dos gaúchos.
— Para nossa surpresa, se encontra mesmo tainha, essa que se pesca no mar e comemos. Ela sobe a Lagoa dos Patos, entra no Guaíba e entra no Dilúvio — explica o professor Nelson Fontoura.
Já se viu gente pescando no Dilúvio, mas esses peixes não são indicados ao consumo humano. Não só por causa do esgoto, mas especialmente pelos metais potencialmente tóxicos já encontrados na água, como zinco, chumbo, cromo, níquel e cobre. As fontes são difusas, mas o material pode vir de desgaste automobilístico, da borracha dos pneus e dos freios, da própria manta asfáltica, da queima da gasolina, entre outros.
Iniciado neste semestre, um projeto do Laboratório de Ecologia de Paisagem da UFRGS pretende identificar as espécies de peixes existentes, tanto na área canalizada quanto na parte inicial do arroio, cercada por vegetação. O projeto parte de uma lista de espécies já registrados no passado.
— A ideia é fazer o projeto em toda a bacia do Dilúvio e ver o quanto de biodiversidade que já desapareceu, em relação aos poucos registros científicos que temos, especialmente a partir década de 1980 — comenta o professor do Departamento de Ecologia da UFRGS Fernando Gertum Becker.
Existe, por exemplo, registro antigo de muçum no Dilúvio. É um peixe que tem formato de enguia e consegue respirar também fora da água — por isso, sobrevive mesmo em riachos poluídos e com pouco oxigênio. Também será possível verificar se ainda há espécies mais sensíveis à poluição, como lambaris do gênero Mimagoniates.
— É um lambarizinho azulado, típico de riachos bem preservados, muito sensível à degradação. A persistência dessas espécies em alguns locais da bacia é condição essencial para que haja recolonização de trechos degradados que venham a ser ambientalmente recuperados ou revitalizados — argumenta.
Dentro de uma perspectiva de revitalização urbana, é importante que ambientes aquáticos da cidade, além do atrativo estético e urbanístico, tenham um papel na conservação de biodiversidade
FERNANDO GERTUM BECKER
Professor do Departamento de Ecologia da UFRGS
Becker explica que não é apenas o ambiente poluído que dificulta a vida de peixes na parte urbanizada do Dilúvio, mas aponta a canalização como outro empecilho, com trechos que têm pequenas quedas e bloqueiam a passagem de peixes.
— O próprio manejo do Dilúvio dificulta, pois volta e meia ele é dragado para retirada de entulhos — acrescenta.
Até o momento, a equipe da Ecologia da UFRGS fez algumas saídas de reconhecimento, mas deve começar a realizar a análise pela parte do Dilúvio que corre ao lado do Campus do Vale. A técnica usada nas saídas de campo será a de pesca elétrica. Trata-se de um gerador de energia que cria um campo elétrico dentro da água para capturar os peixes sem necessariamente precisar matá-los.
Vão ser buscados financiamentos para a evolução do projeto, que inclui a análise dos habitats. Além de saber quais espécies ainda estão presentes, o objetivo é pesquisar quais características dos riachos urbanos podem ser manejadas para favorecê-las.
— Dentro de uma perspectiva de revitalização urbana, é importante que ambientes aquáticos da cidade, além do atrativo estético e urbanístico, tenham um papel na conservação de biodiversidade — destaca Becker.
Tartarugas e cágados também estão presentes
Tem ao menos uma espécie de tartaruga e uma de cágado que vivem na parte canalizada do Dilúvio. A primeira é a tigre d’água. O nome advém das suas cores, com listras amareladas e alaranjadas, e elas podem viver até 30 anos. Quem passa pela Ipiranga também pode flagrar o cágado-cinza, ou cágado-de-barbelas. É uma espécie de cágado pescoçudo de água doce, caracterizado por uma carapaça oval e achatada.
GZH não conseguiu registrar o animal nesse começo de inverno, mas isso não significa que não esteja por aí.
– As tartarugas são mais visíveis quando saem da água pra fazer termorregulação. No verão, com a água baixa, é mais fácil de ver. E é importante lembrar que Guaíba e Dilúvio estão interligados, então eles entram e saem – relata Lisiane.
Esses animais se alimentam de pequenos peixes e vegetais, podendo incluir gramíneas e macrófitas, como aguapés.
Prefeitura propõe uma operação consorciada
Ao longo das últimas décadas, já foram anunciados vários projetos para despoluir o Dilúvio, incluindo um plano listando 171 ações necessárias para recuperar a bacia e limpar toda a água do arroio, lançado em dezembro de 2012 por professores da UFRGS e da PUCRS e pelas prefeituras de Porto Alegre e Viamão. Mas não se obteve recursos para tirar a ideia do papel.
A aposta da gestão do prefeito Sebastião Melo está em uma operação urbana consorciada da Avenida Ipiranga, que, a longo prazo, financiaria a limpeza do Dilúvio e a transformação das suas margens em um parque público linear. O plano passa por permitir a construção de prédios mais altos ao longo da Avenida Ipiranga e utilizar os recursos da venda de índices construtivos para a despoluição e o desassoreamento do arroio, além do trabalho de contenção e paisagismo das margens.
O prefeito apresentou a ideia em visita à Escandinávia realizada em maio, e a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade está trabalhando em um termo de referência que possibilitará a contratação de uma empresa ou consórcio para modelar, jurídica, econômica e paisagisticamente, a operação urbana consorciada – a previsão do Executivo é de que a licitação ocorra ainda neste ano.
O secretário da pasta, Germano Bremm, estima que a proposta poderia render até cerca de R$ 1,5 bilhão para a revitalização do Dilúvio, mas destaca que se trata de um projeto de longo prazo, de cerca de 30 anos. Bremm não dá uma solução para a limpeza do arroio a curto prazo – afirma que o caminho para a despoluição também viria de empresa especializada contratada para a operação.