Uma etílica proposta de comportamento e consumo arrisca os primeiros passos em Porto Alegre. Enquanto o negócio busca se tornar mais conhecido, os proprietários apostam que as vinícolas urbanas irão deslanchar.
Capital de um Estado marcado pelas colonizações italiana e portuguesa, entre outras, Porto Alegre tem tradição de famílias que produzem vinho na garagem de casa para consumo próprio. O conceito das vinícolas urbanas vai além: é um estabelecimento comercial destinado a atender o público, como nas lojas do Vale dos Vinhedos, na serra gaúcha, com o acréscimo de que os vinhos e espumantes são produzidos integralmente ou parcialmente ali dentro daquele imóvel, encravado entre o asfalto e os prédios da cidade. A uva é comprada de vinhedos no Interior, mas a vinificação ocorre na urbanidade.
A ideia é que o apreciador da metrópole possa, em breve deslocamento e sem precisar de hospedagem, contemplar o processo de produção e as barricas de carvalho, conhecer a adega, fazer perguntas sobre história e técnicas de vinificação, além, é claro, de bebericar e harmonizar com acepipes.
Eduardo Gastaldo, proprietário da vinícola urbana Ruiz Gastaldo, diz que o nicho surgiu na década de 1980 na Califórnia, nos Estados Unidos.
— O conceito é de que a vinificação tem de ser feita na metrópole, trazendo apenas a uva de fora. O brasileiro está gostando mais de vinho. Acredito que vai estourar. Vinícola urbana é praticidade e proximidade — avalia Gastaldo.
As estatísticas oficiais mostram que a iniciativa é, de fato, seminal em Porto Alegre. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), órgão que faz o registro do produto, aponta a existência de apenas sete vinícolas na capital gaúcha. Parte delas é de empresas tradicionais, conforme veremos na sequência desta reportagem, porque ficam localizadas na zona rural do município e contam com os seus próprios vinhedos. Portanto, não reproduzem o conceito de vinícola urbana.
Nesse ramo, se ganha no volume ou na qualidade. Esse povo busca a bebida gourmetizada. São produtos artesanais, com controle de qualidade. Entendo que tem mercado
LUÍS PAULO VIEIRA RAMOS
Chefe do escritório da Emater em Porto Alegre
Já nos registros da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo, existem duas vinícolas e quatro cantinas cadastradas. A cantina é uma minivinícola, de produção restrita. Não envasar bebida em escala industrial é uma das apostas do negócio, calcado na exclusividade, na tradição e na paixão pela vinificação.
— Nesse ramo, se ganha no volume ou na qualidade. Esse povo busca a bebida gourmetizada. São produtos artesanais, com controle de qualidade. Entendo que tem mercado — avalia Luís Paulo Vieira Ramos, chefe do escritório da Emater - serviço estadual de extensão rural - em Porto Alegre.
Enólogo argentino escreve história no RS
Faz um ano que o argentino Adolfo Lona abriu a homônima vinícola urbana na Avenida Vasco da Gama, no bairro porto-alegrense Rio Branco. O local tem adega climatizada, um enorme tanque de fermentação de aço inox e espaços para confraternização. Apesar da pouca idade do negócio, Lona tem longa caminhada. Ele nasceu em Buenos Aires e se criou em Mendoza, onde obteve formação em enologia.
Migrou para Garibaldi (RS) em 1973 para trabalhar na indústria de espumantes. Ao analisar a sua trajetória, diz que “participou da evolução da vitivinicultura gaúcha”. E faz sentido: em julho de 1981, em Garibaldi, Lona foi o presidente da 1ª Festa Nacional do Champanha, a Fenachamp, época em que a bebida ainda não era chamada de espumante. Desse período, ele exibe na parede da adega uma fotografia em que recebe, na abertura da feira, o então presidente João Figueiredo.
Passadas mais de quatro décadas em Garibaldi, decidiu se mudar para Porto Alegre. Como não tinha vinhedo próprio, selecionou 18 produtores da Serra que lhe fornecem uvas. Começou, assim, a vinícola urbana Adolfo Lona.
Dentro do imóvel da Vasco da Gama, ele faz exclusivamente a criação do espumante pelo método tradicional, com tomada de espuma, maturação e acabamento. Isso consiste em um processo artesanal de segunda fermentação do vinho já dentro da garrafa, responsável por originar as borbulhas e dar vez ao espumante. As garrafas são posicionadas com o bico inclinado para baixo em cavaletes de madeira, os pupitres. Em momentos específicos, são levemente giradas e mais inclinadas na estrutura. O resíduo da levedura deixa o fundo da garrafa e se acumula no gargalo. No final do processo, a borra é retirada de forma manual, em uma engenhoca criada por Lona para congelar apenas o que é indesejado. Oito mil garrafas são produzidas por ano neste método tradicional (champenoise), que pode demandar até 30 meses. E o objetivo é chegar a 20 mil.
Tenho certeza que mais gente vai se encorajar a abrir vinícolas urbanas. Se produz perto de casa, sem a necessidade de investir em vinhedo
ADOLFO LONA
Proprietário da vinícola Adolfo Lona
O restante da produção de Lona - inclusive o vinho que dá origem ao espumante tradicional elaborado na Vasco da Gama - é feito por ele em uma indústria da Serra, com aluguel do maquinário. Lá ele vinifica 75 mil garrafas ao ano, das quais 55 mil são de espumante charmat - método que se vale de grandes tanques, chamados autoclaves - e outras 12 mil são unidades de vinho.
Tudo é vendido pela loja virtual e no balcão. No formato presencial, são oferecidos cursos, bate-papos e, claro, degustações.
— Tenho certeza que mais gente vai se encorajar a abrir vinícolas urbanas. Se produz perto de casa, sem a necessidade de investir em vinhedo — aposta Lona.
O engenheiro-vinhateiro da Chácara das Pedras
Eduardo Gastaldo é engenheiro e exerce a profissão, mas, recentemente, vem se dedicando cada vez mais à vinificação. Em 2017, apaixonado pelo mundo que se descortinava sob a influência do sogro, fez a primeira produção própria. A boa receptividade entre amigos ocasionou um salto e, a partir de 2019, a experiência virou negócio: a vinícola urbana Ruiz Gastaldo estava registrada e pronta para operar com escala e perenidade.
Gastaldo envasa, atualmente, 4,2 mil garrafas de vinho ao ano. Na safra de 2022, comprou a uva de vinhedos localizados em Caxias do Sul, Encruzilhada do Sul, Piratini e Vacaria. Selecionar a matéria-prima com rigor técnico é fundamental, diz ele:
— O segredo do bom vinho começa pela boa uva.
Colhida a carga de cerca de cinco toneladas, tudo é levado para a sede da vinícola urbana, no bairro Chácara das Pedras, na zona norte de Porto Alegre.
Gastaldo transformou o que era uma ampla garagem em uma moderna instalação, com salão de eventos, balcão para convidados, adegas, áreas de fermentação e de maturação. Na sede, o processo de vinificação é feito do início ao fim, desde a seleção manual de cachos até a trasfega - separação para remover a borra -, o envase e o arrolhamento.
Os rótulos de Gastaldo são peculiares e contam a história da sua família e de Porto Alegre. Seu bisavô, Januário Greco, veio da Itália nos idos de 1900. O ancestral, que chegou a plantar uva e vinificar na Capital gaúcha na década de 1930 para consumo familiar, dá nome a um dos vinhos da Ruiz Gastaldo.
Faço vinhos buscando gastronomia e boa guarda. A gastronomia pede comida para harmonizar, e a boa guarda traz o bom envelhecimento
EDUARDO GASTALDO
Proprietário da vinícola urbana Ruiz Gastaldo
Já o rótulo batizado de Porto Alegre é adornado pelo amanhecer no trecho 1 da nova orla do Guaíba. Já o Redenção, de leveduras “selvagens”, traz o visual do Monumento ao Expedicionário, símbolo do tradicional parque da cidade.
Sem formação em enologia, ele se considera um vinhateiro inspirado na escola clássica europeia, de bebidas menos alcoólicas.
— Faço vinhos buscando gastronomia e boa guarda. A gastronomia pede comida para harmonizar, e a boa guarda traz o bom envelhecimento — comenta.
Os produtos são vendidos em loja virtual e, no presencial, podem ser adquiridos em degustações agendadas por grupos de visitantes ou por confrarias.
Vinho na zona rural
Diferentemente da área urbana, a zona rural de Porto Alegre conta há mais tempo com algumas vinícolas e cantinas tradicionais, que trabalham com a lógica do vinhedo próprio. Expoente do ramo na Capital gaúcha é a Villa Bari, vinícola do bairro Vila Nova, de onde é possível enxergar colinas, pradarias e o Guaíba. Dos seus quatro hectares de vinhedos, foram colhidas sete toneladas de uva em 2022. A produção garante o envase médio de 5 mil garrafas ao ano.
A primeira safra da Villa Bari veio em 2003 e, em quase 20 anos, a vinícola porto-alegrense alcançou renome. Entre produtores locais, o vinho da Villa Bari, vendido só pela internet, é apontado como de alta qualidade. Um dos segredos é a longa maturação: atualmente, estão à venda garrafas da safra 2009.
— O vinho fica quieto, em ambiente fresco, se desenvolvendo e buscando o melhor potencial. É outro modelo de produção. Vendemos pouco, mas sempre com qualidade — diz o proprietário Luiz Alberto Barichello.
Nascido em Garibaldi, ele começou a tomar afeição pelo vinho na infância e, hoje, divide seu tempo entre Porto Alegre e a Toscana, na Itália, onde tem outra vinícola, a Villa Triturris.
Defensor das belezas da zona rural, Barichello pretende, agora, organizar eventos e visitações à Villa Bari, paraíso de 22 hectares encravado no pulmão verde da capital gaúcha.
Chácara que virou cantina
Vizinho de Barichello na Vila Nova é o Sítio da Pedra Salomoni. Essa chácara foi posse, originalmente, do italiano Giuseppe Salomoni, em 1906. Hoje, quem toca a propriedade é o bisneto Rogério Salomoni, que transformou o local em uma cantina, produtora de pequenas quantidades de vinho há seis anos. Ele se orgulha de ter os dois hectares de vinhedos integralmente cobertos por uma plasticultura que evita fungos na parreira. Como resultado, não precisa aplicar produto químico. É um produtor orgânico que colhe cerca de cinco toneladas de uva. Uma parte é vinificada e outra vira suco. A terceira parcela vai para a agroindústria, de onde saem produtos como chimíer.
A ideia é ter um roteiro em que as pessoas possam visitar as cantinas. Isso recuperaria a história da Vila Nova d’Itália, como era chamado esse bairro à época da chegada de imigrantes italianos
ROGÉRIO SALOMONI
Proprietário do Sítio da Pedra Salomoni
Salomoni busca junto à prefeitura a viabilização de um projeto de resgate e valorização da cultura italiana com a criação do Caminho das Cantinas, em conjunto com outras pequenas propriedades vitivinícolas da região.
— A ideia é ter um roteiro em que as pessoas possam visitar as cantinas. Isso recuperaria a história da Vila Nova d’Itália, como era chamado esse bairro à época da chegada de imigrantes italianos — conta Salomoni, citando que a ideia depende de legislação e investimentos em pavimentação e sinalização.
Valor? Só se for sentimental
Em um sítio do bairro Boa Vista do Sul, cercado de mata e com acesso a uma praia balneável do Guaíba, respira-se ar puro e gélido. Na natureza porto-alegrense, o jornalista Eduardo Tavares construiu com suas próprias mãos uma adega com pedra grés e, há 10 anos, faz vinho com amigos. Atualmente, são oito produtores artesanais que dividem os custos e, depois, repartem cerca de 650 garrafas entre si por ano. Em 2022, fizeram duas viagens a Dom Pedrito para buscar, em caminhonetes, uma tonelada de uva. Voltaram da fronteira direto para a Quinta das Tarântulas, nome da propriedade de Tavares, para iniciar a vinificação.
A desengaçadeira, que separa o bago da uva dos cachos, foi construída manualmente por Tavares. Descendente de portugueses, ele cresceu ajudando o pai a fazer vinho no bairro Santa Cecília, em Porto Alegre. Anos adiante, quando decidiu retomar a produção na Quinta das Tarântulas, envolveu amigos e a esposa Karin, publicitária e designer gráfica que fica responsável pela confecção dos rótulos. Os processos de desenvolvimento do vinho, como a trasfega, viram reuniões de amigos acompanhadas pelo deleite de uma churrascada. O único valor, ali, é sentimental.
— Gosto de coisas manuais. Acho importante incentivar, em vez de apenas comprar tudo. Não é minha área a sofisticação que o vinho pegou. Hoje é símbolo de status. O que me interessou foi aprender a vinificar — reflete Tavares.