Horas antes do primeiro culto na igreja evangélica que fica na esquina da Avenida Júlio de Castilhos com a Rua da Conceição, no Centro Histórico de Porto Alegre, quem espera em penitência na calçada em frente às portas ouve uma palavra muitas vezes salvadora. Com calça e camisa azuis cobertas pelo colete verde-limão, de binóculo na mão esquerda e celular na direita, Paulo Borges, 57 anos, agente da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), profetiza aos cerca de 40 trabalhadores, estudantes e demais pedestres no local:
— Olha o São Manoel chegando!
O santo batiza a linha de ônibus de número 439, que para ali e depois passa pela rua de mesmo nome, no bairro Rio Branco. Os frequentadores da esquina fiscalizada pelo agente de trânsito Borges há 10 anos estão acostumados com o serviço sonoro nas primeiras horas da manhã. Ele monitora a chegada de cada ônibus por meio do aplicativo da EPTC e grita para quem está por perto quando consegue ler o letreiro no para-brisa. As lentes vermelhas do aparelho óptico permitem que ele enxergue o itinerário de cada ônibus pelo menos 15 segundos antes de quem tenta visualizar a mesma informação a olho nu.
O grito dele é abafado pela máscara. O tom empostado e o ritmo de locutor ficam mais nítidos quando o veículo para ao lado da calçada, o motor silencia e os detalhes do itinerário são passados aos interessados. Com o vaivém de pessoas e automóveis, a voz precisa superar o barulho dos motores do Centro e chamar mais atenção do que a tela de cada celular na mão de quem espera desatento.
— Este passa na CEEE, mas não passa mais na João Pessoa — explica, ao lado do 343.
— Agora ele é Ipiranga PUC, é o “D Paraguaio” — anuncia, criando mais um dos tantos apelidos que deu para linhas.
Ao lado dele, alguns riem, outros seguem indiferentes. Três mulheres, uma delas com o filho dormindo no colo, esperam seus ônibus e fazem uma graça com o agente quando a reportagem o aborda.
— Quando ele não está, a gente fica perdida aqui. Agora ele vai virar “garoto EPTC” — brinca Zilma Munhoz.
— Garoto aos 57 é difícil — Borges responde.
O bom humor e a constância são os hábitos do agente. Borges completou, nesta terça-feira (5), 23 anos de empresa — 10 deles na mesma parada.
— Antigamente, tinha mais gente e mais carros. Os ônibus faziam uma fila aqui e era difícil para o pessoal saber qual era o que vinha lá atrás. Então comecei a identificar e tirar dúvidas sobre os trajetos e horários, falando alto — explica o agente, relembrando de quando criou o hábito de bradar informações antes que os celulares pudessem prestar o mesmo serviço em tempo real.
Fiscal disciplinado
No ponto desde as 6h30min, Borges não ingeriu uma gota de água desde a chegada da reportagem naquela esquina, às 7h30min. Depois das 8h30min, ele faz um intervalo, descansa e se hidrata antes de deixar a esquina e se voltar às atividades de fiscalização de veículos particulares em outros pontos da cidade. Ele garante que se acostumou ao ritmo de duas frases gritadas por minuto, em média, sem precisar de exercícios ou de preparação específica para o aparelho vocal. Antes de servir à população na EPTC, trabalhou no Exército, atividade onde os comandos falados também são rotina.
— Cansado eu ficaria se ficasse parado e quieto. Talvez esse costume venha de lá, mas eu acho que não… — desconversa, usando uma máscara com estampa camuflada, com as cores dos uniformes militares, interrompendo a própria resposta: — Olha o Jardim Ypu, olha o Rubem Berta! Este “Rubinho” não se atrasa e passa no (colégio) Santa Inês; vai lotar, mas daqui a pouco vem outro.
Antes da esquina
Natural de Cruz Alta, Borges veio para Porto Alegre aos 10 anos de idade. Serviu no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) da Capital, prestando oito anos de serviço militar em Uruguaiana. Aos 34, virou agente da EPTC. Inicialmente, monitorava as paradas de ônibus do outro lado dos viadutos, na calçada da rodoviária, e, quando foi transferido para a Júlio de Castilhos, chegou a receber críticas.
— Uma vez um homem atravessou e reclamou que tinha muito carro parando perto da parada do lado de lá e que não tinha ninguém lá. Disse que eu ficava aqui só gritando, que parecia que estava cantando número de bingo. Mas eu nem número falo, só digo o nome das linhas porque os números confundem mais ainda o povo — argumenta.
A grande maioria dos comentários, no entanto, é positiva.
— Levo pelo menos 30 minutos nessa parada. Venho de Arroio dos Ratos, e, se perco um ônibus, pego o próximo muito atrasada, então, ele é meu salva-vidas — diz Evelyn Rodrigues, que aguardava o 429 Iguatemi que a leva ao trabalho: — Espero aqui todos os dias há sete anos. Segui a dica da minha mãe, que também pegava ônibus aqui há mais tempo, sempre com a ajuda dele (Borges). Todas as paradas da cidade deveriam ter alguém ajudando assim.
— Com chuva ele também está aqui, coloca uma capa e segue gritando. Nos ajuda sempre e melhora o clima na parada — garante o assistente administrativo Cristiano Daniel.
Mudanças no serviço
Na chegada do 473-Jardim Carvalho, Borges informa o roteiro enquanto as pessoas sobem as escadas, cumprimenta o motorista e reforça uma novidade nem tão nova assim:
— Esse não tem cobrador.
A saída do profissional encarregado pela cobrança, troco, e que auxiliava o motorista com informações também prestadas por Borges ainda incomoda alguns passageiros. Além de se queixar do atraso e de horários de linhas como a 429-Iguatemi e 432-Carlos Gomes, passageiras questionavam se todos os ônibus funcionarão sem cobrador, afirmando que sentem falta do prestador de serviço.
A tabela horária e alterações no trajeto também causam dúvidas nos usuários — e até em motoristas. Desde a segunda-feira (4), o D43 deixou de circular, sendo substituído pelo 343 — apelidado por Borges de “D Paraguaio” — e pelo 353. As linhas já existiam, mas agora terão que cobrir a demanda de estudantes até a Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) e ao Campus do Vale da Universidade Federal do RS (UFRGS).
O próprio Borges, morador do bairro Humaitá, é impactado pelas mudanças na oferta de linhas na Zona Norte. Ele diz que prefere vir para o trabalho a bordo de um vagão do trensurb, ainda que precise caminhar da Estação Mercado até o bairro Praia de Belas para iniciar seu turno diariamente.
Contra a imagem de "multador"
A disciplina militar e a oratória sacerdotal fazem com que Borges seja um aliado dos usuários mais velhos na batalha matinal de embarcar em um ônibus no centro de Porto Alegre. A aposentada Lourdes Silveira se queixa de que aos finais de semana as demoras são maiores e os motoristas não estacionam perto da calçada, dificultando o embarque.
Mesmo que a maioria dos usuários da parada fique longe do agente e não dependa do grito dele para começar seu dia no transporte público, pelo menos 30 pessoas se aproximaram de Borges nos 60 minutos em que a reportagem acompanhou seu trabalho. Outras dezenas de passageiros colocavam a máscara e se encaminhavam para o embarque no meio-fio no momento em que ele gritava, mesmo sem ainda ter enxergado que era o seu ônibus que vinha ao longe na avenida.
— Este rapaz aqui é o melhor serviço que a EPTC presta — elogia Lourdes, esperando pelo 432-Carlos Gomes, que passa de hora em hora.
— É gratificante receber esses elogios. São o reconhecimento à nossa dedicação diária e tira a imagem de “multadores” que eu e os colegas muitas vezes temos. Somos uma empresa pública e tentamos ajudar a população — agradece Borges.