Cidade com mais microcervejarias do Brasil, Porto Alegre ganhará como presente de aniversário de 250 anos cerca de 30 cervejas artesanais inéditas. Com rótulos ainda a serem definidos pela Associação Gaúcha de Microcervejarias (AGM), o projeto Colab 250 Anos incentiva microcervejarias de todo o país a criarem receitas homenageando a capital do Rio Grande do Sul. A data de lançamento e venda dessas edições exclusivas, no entanto, deve ocorrer somente em 5 de maio, mais de um mês depois do aniversário, em 26 de março.
— A ideia é movimentar o maior número de cervejarias, levando mais longe o nome e a referência de Porto Alegre como capital cervejeira, tendo em vista que cada cervejaria vai poder fazer uma bebida nova e comercializar onde e como quiser — explica o gestor da AGM, Gustavo Cunha.
A taxa de inscrição no projeto é de R$ 350 por cervejaria, e dá direito a receber cerca de R$ 1 mil em lúpulos e maltes importados (ingredientes para a produção da cerveja desenvolvida), segundo Cunha. A diferença da data do aniversário da cidade para a do lançamento das cervejas inspiradas em Porto Alegre foi determinada por conta do Carnaval — ainda que com as restrições da pandemia —, esperando que mais produtores participem da ação se ela não competir com a produção e distribuição na tradicional festa popular.
Uma das maiores da Capital e pioneira no 4º Distrito, a 4Beer já planejou a sua receita exclusiva. Ela vai na contramão dos protestos de contribuintes que se queixam do gosto e cheiro da água que abastece as torneiras da cidade a cada verão e enaltece a boa qualidade do principal insumo cervejeiro fornecido pela Bacia do Guaíba e seus afluentes. A APA Águas do Jacuí será uma homenagem e um pedido de preservação do ecossistema vizinho à Capital.
— A água que recebemos do delta do Jacuí é branda. Ou seja, não tem muitos sais minerais. Precisamos filtrá-la apenas para retirar o cloro que acrescentam no tratamento, que não pode ter na cerveja, mas ela é muito boa para receber os ingredientes e ajustes que são necessários em relação à acidez, à concentração de gás e aos diferentes maltes e lúpulos que usamos — explica a engenheira química e sommelier Amanda Lesnik, 31 anos, mestre cervejeira da 4Beer, na zona norte da Capital, responsável pela produção mensal de 25 mil litros da bebida.
O nome é um jogo de palavras com a sigla APA, o tipo de produção e ingredientes que formarão uma bebida no estilo american pale ale, que tem as mesmas iniciais de Área de Proteção Ambiental.
— Queremos enaltecer a importância da preservação desse patrimônio natural que temos aqui ao lado da cidade, que também nos fornece uma água muito boa para a produção cervejeira — explica o arquiteto Caio de Santi, cervejeiro e um dos quatro sócios da 4Beer, sem revelar os ingredientes que serão utilizados, mas adiantando as características pretendidas com a nova bebida: — Faremos uma cerveja refrescante e agradável, do jeito como queremos que a água do delta do Jacuí seja para nosso consumo por muito tempo.
Ainda não há data estipulada para começar a produção da APA Águas do Jacuí. A ideia da 4Beer é iniciar com mil litros, comercializados em latas, dentro do projeto Colab da AGM. Caso o público receba bem o produto, é cogitada uma continuidade.
Outros empreendedores cervejeiros também preparam seus destaques para os 250 anos da Capital. Vinicius Cordeiro, proprietário da Veterana e da Ruradélica, soma uma produção média de 12 mil litros por mês, em volume reduzido por conta da queda de consumo durante a pandemia. As duas cervejas a serem feitas pela fábrica serão uma haze pale ale e uma american pale ale original sem variações.
— Ainda não definimos nome, talvez adotemos apenas o definido pelo projeto Colab — antecipa o empresário, que detalha seu plano para uma das receitas inéditas: — Uma american pale ale que trará consigo aromas e sabores inusitados de groselha, uvas brancas, melão, abacaxi e pêssego. Tudo isso deve-se ao nosso blend de lúpulos que tanto amamos, que junta Nelson Sauvin e Mosaic. Ainda não vimos no Brasil um blend assim. Já testamos algumas vezes e adoramos o resultado — projeta.
A identidade de cada cerveja
Leve e refrescante ou mais encorpada, escura ou clara, amarga ou com notas frutadas, cítrica ou adocicada, com cheiro de bergamota ou de café, todas as combinações resultantes em diferentes sensações na hora de consumir a cerveja começam em três ingredientes básicos: água, malte e lúpulo.
Em uma explicação resumida, o malte é um grão da cevada em processo de germinação que é interrompida e passa por um processo de secagem. Nessa secagem, diferentes níveis de torra conferem gosto e cor que vão produzir múltiplas cervejas, influenciando no paladar e no aspecto visual dela. Já o lúpulo, outra planta, pode ser utilizado em flor ou processado em formato de pellets — cubinhos de poucos centímetros. É o conservante natural da cerveja e erve para dar gostos e aromas à bebida, de acordo com os ingredientes paralelos que são acrescentados durante o processamento.
— A cerveja do tipo american pale ale é mais forte do que uma lager ou pilsen, encontradas em mercados a preços menores, mas menos alcoólica e menos amarga que uma indian pale ale (IPA). É uma cerveja com lúpulo de mais frescor, as pessoas gostam porque é mais aromática e menos amarga, mais fácil de beber — resume Caio de Santi, cervejeiro desde 2012.
Originalmente, a nomenclatura "pale ale" significava, em tradução livre do inglês, “cerveja clara de alta fermentação”. Para vencer a grande viagem da ilha britânica até a Índia e manter as condições de consumo da cerveja, os ingleses começaram a adicionar cargas extras de lúpulo e mais álcool nas suas tradicionais pale ale, surgindo assim a indian pale ale (IPA), uma cerveja mais amarga e alcoólica. Posteriormente, os americanos começaram a usar os seus lúpulos na pale ale, com perfil aromático mais frutado e sem aumentar o teor alcoólico, surgindo, assim, a american pale ale (APA).
Com o passar dos anos, as variações de cores e gostos ampliaram a gama de possibilidade do estilo. Para o Colab que pretende comemorar o aniversário da capital das cervejas artesanais do Brasil, a sigla PA também remeterá a Porto Alegre, e outros três tipos além da APA serão permitidos nas regras do projeto: session IPA, haze IPA e juicy IPA. Cunha explica a diferença entre elas:
— Elas têm gostos mais leves, com aromas e toques de frutas e flores, do que uma IPA tradicional. Cada cervejaria vai dar seu toque especial, dentro desses quatro estilos. A criatividade é necessária para não criarem várias cervejas iguais. Cada uma vai envasar como preferir, em lata ou garrafa, e também vender de acordo com o preço que calcular como justo. Daremos essa liberdade — detalha o gestor.
Retorno social
De acordo com Cunha, é esperado que 40% do lucro arrecadado por cada cervejaria com a venda da bebida dedicada a Porto Alegre seja revertido para instituições sociais da Capital. Essa e outras determinações estão em uma espécie de contrato de participação entre as fabricantes e a associação. Graças a apoio de patrocinadores do ramo, a taxa de inscrição dá direito a cerca de cem quilos de malte para cada uma das 50 primeiras microcervejarias inscritas, dois quilos de lúpulos importados para as 80 primeiras e outros cinco quilos para as que forem associadas à AGM.
Rotina da produção
Amanda e cinco colegas produzem, em média, 25 mil litros de cervejas diversas por mês na 4Beer, que fica na zona norte de Porto Alegre. A fábrica conta com quatro panelas de mil litros cada, uma para cada função inicial de mistura, filtragem, fervura e centrifugação do mosto — nome da matéria-prima que depois de fermentada virará cerveja. Cada dia de trabalho inicia antes das 8h e vai até as 18h. Cada cerveja leva, entre as primeiras horas de mistura da água com malte e cozimento com o lúpulo, até o fim do período de “descanso” — maturação e decantação — do líquido pós fermentação, entre 15 e 20 dias para estar pronta.
Cada mil litros de cerveja que são preparados por vez passam pelas quatro panelas (também chamadas de tinas) e por um tanque de fermentação, todos interligados por dutos e bombas, podendo ou não ser misturado com mais lúpulo para ressaltar determinado sabor pretendido pela mestre cervejeira durante a fermentação.
Mais do que os cerca de 600 litros de água colocados na panela onde a produção começa, todos os equipamentos e as tubulações são constantemente higienizados pela água que vem do delta do Jacuí pela equipe comandada por Amanda na 4Beer. Entre a tarde de quarta-feira (23) e a manhã de quinta (24), Dionathan Rafael Amaral, 27, Felipe Kercher, 29, Giovane Soares, 37, e Yuri Padilha, 21, se revezavam nas tarefas dentro da fábrica.
O ambiente é fechado para evitar a entrada de bichos e insetos. Não há circulação de ar, apenas ventiladores para amenizar o calor das fervuras que acontecem no começo do processo. Por outro lado, o armazenamento na fermentação e maturação varia de 0°C a 18°C, marcando o contraste entre dois ambientes na mesma linha de produção. Provas são feitas regularmente por Amanda e acompanhadas de testes químicos em um laboratório anexo à fábrica, conduzido pela assistente, a estagiária estudante de Engenharia de Alimentos na UFRGS Júlia Ramos, 24.
— Essa aqui tem lúpulos de três continentes diferentes: neozelandês, norte-americano e europeu. Acho ela bem herbal, com um pouco de toque cítrico — avalia Amanda, depois de observar e provar um gole de uma IPA Três Mundos que ainda não havia alcançado a concentração de gás nem a fermentação ideal para o consumo.
Ela me ofereceu um gole às 9h desta quinta-feira (24) e recebeu uma resposta negativa, apesar do calor que fazia ao lado dos tanques de fermentação. Na minha barriga ainda acontecia a digestão de um café da manhã reforçado, o que me fez declinar a simpática oferta, dessa vez.
— Às vezes tenho que provar umas três diferentes antes de conseguir parar para tomar um café da manhã — confessa a especialista.
Lauro Alves, o repórter fotográfico responsável pelos registros desta pauta, aprovou a ideia mesmo sem ter a chance de saborear uma gelada recém tirada do tanque. Apesar disso, bebeu do conhecimento de Amanda sobre a arte de fazer cerveja, pois também tem seus momentos de cervejeiro com maquinário amador em casa.
Repórter também bebe
O que ela não ficou sabendo é que meu turno de trabalho mais recente tinha acabado, às 16h do dia anterior, com um copo da refrescante e cheirosa APA produzida por ela e servida por Caio na torneira do bar em frente à fábrica. Por mais que as cervejas artesanais não fossem uma novidade para mim, beber uma depois de entender melhor o processo de fabricação, com toda as demoras e infinitas possibilidades de aromas, cores e gostos, tornou a experiência ainda mais interessante.
Ainda não consegui identificar a inspiração exata do lúpulo que tornava o aroma dela cítrico, mas imitei Caio quando ele analisou demoradamente, entre goles, o resultado da combinação feita nas panelas gigantes. Prometi que voltaria outro dia com menos matéria para escrever e mais paciência para degustar.