Os dados são tão significativos que merecem um brinde. Porto Alegre é o maior centro cervejeiro do Brasil. E não é o único município do Estado na lista dos maiores: Caxias do Sul é a terceira cidade do país com mais cervejarias, atrás da capital gaúcha e de Nova Lima — o município da Grande Belo Horizonte é um polo de produção da bebida desde o século 19. No ranking dos Estados, o Rio Grande do Sul é também o primeiro em número de fábricas de cerveja, à frente de São Paulo. Só no ano passado, foram abertas 44 novas empresas do ramo em solo gaúcho, chegando a 186 (quase 21% do total nacional). Com 889 fábricas, o Brasil somou, em 2018, 210 a mais do que em 2017 (crescimento de 30%). Com isso, em média, pode-se dizer que a cada dois dias uma cervejaria abre as portas no país.
Tamanha representatividade do Estado em um setor tão importante para o Brasil tem um motivo especial: a cerveja artesanal. Mais encorpada, saborosa e variada do que a bebida vendida em escala industrial, na visão de seus apreciadores, essa bebida tem movimentado um mercado só seu. E não são poucos os adeptos.
Quem investe nessa área geralmente o faz por paixão. Se os pioneiros das cervejarias artesanais começavam no ramo geralmente porque tinham algum familiar, ainda que distante, envolvido nessa produção, nos últimos anos tem crescido o número de empresas que surgem depois que seus criadores, frequentemente jovens na faixa dos 20 anos, estimam que haja um público disposto a consumir — pagando, claro — a cerveja que eles despretensiosamente fabricavam nas panelas de casa.
— Não tem nada como provar uma cerveja diretamente do tanque. Tu já experimentou? — pergunta Diego Machado, sócio proprietário da Malvadeza e presidente da Associação Gaúcha de Microcervejarias (AGM).
À dúvida, segue-se uma cena que resume essa paixão dos empresários desse ramo por seu produto. Diego pega uma tulipa em sua fábrica, em Porto Alegre, pergunta ao cervejeiro Mauro Peres quais tanques estão com a bebida pronta para o consumo e segue até um deles. Da torneira, sai uma pale ale levemente gelada e de cor vívida. Quando bebe, Diego sorri:
— Saborear a cerveja que tu mesmo fabricou ao final de um longo dia não tem preço.
À Malvadeza, somam-se mais de uma dezena de cervejarias sediadas apenas no bairro Anchieta, na Capital — uma concentração de fábricas da bebida que encontra poucos paralelos no Brasil e, acreditam os empresários, no mundo. Porto Alegre como um todo tem a impressionante taxa de 40 mil habitantes por cervejaria. A cidade de São Paulo, por exemplo, tem 1,2 milhão de pessoas por fábrica da bebida.
A forma de produção da cerveja não é, levando o termo à risca, exatamente artesanal. Há tanques, envasilhamento, pasteurização e uma série de processos semelhantes à forma como a bebida é feita nas grandes fábricas. Não poderia ser diferente: sem esse tipo de automatização, não se conseguiria o registro necessário para operar legalmente.
Mas a escala com que o produto é feito nas empresas artesanais é incomparável: há qualquer coisa entre 8 mil litros e 100 mil litros da bebida sendo produzidos em um mês, enquanto na indústria esses números estão na casa do milhão. Isso, somado ao cuidado quase individualizado com cada lote, e, garantem os produtores, à qualidade dos ingredientes, diferenciam a cerveja artesanal da chamada "comercial".
Eles estão disputando um mercado minúsculo. Com todos os custos da fabricação, o negócio não é sustentável.
DADO BIER
Pioneiro na fabricação de cerveja artesanal no Brasil
Não há números específicos, nem no Rio Grande do Sul, nem no Brasil, que forneçam um panorama sobre o consumo da cerveja artesanal. Portanto, não é possível garantir que a bebida tenha ganhado muitos novos adeptos recentemente. Ainda assim, é provável que sua fabricação tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos, levando-se em conta a quantidade de novas cervejarias que surgem a cada mês. Quem está no ramo estima, no entanto, que o consumo das versões artesanais da bebida represente apenas 1% de toda a venda de cervejas no Brasil.
— Eles estão disputando um mercado minúsculo — avalia o empresário Dado Bier, fundador da cervejaria que leva seu nome.
Pioneiro na fabricação de cerveja artesanal no Brasil, Dado tem hoje uma visão crítica sobre esse mercado. Sua empresa já produz em escala industrial, mas começou pequena, em 1995, como uma microcervejaria — algo incomum naquela época. Para Dado, há uma "glamourização" do ramo.
— A diferença de preço de uma cerveja chamada artesanal chega a três vezes o valor que é vendida uma bebida industrial. Com todos os custos da fabricação, o negócio não é sustentável — afirma.
Acho que a gente tem condições de multiplicar por 10, por 15, por 20 o volume de vendas das cervejarias artesanais. Mas passamos por pontos muito importantes para chegar lá.
DIEGO MACHADO
Presidente da Associação Gaúcha de Microcervejarias (AGM)
O preço, de fato, é visto como um dos maiores obstáculos para os cervejeiros artesanais — e, claro, para o público consumidor. Como não é produzida em escala industrial, a fabricação da bebida sai caro, e ainda há muitos impostos sobre o produto.
— Acho que a gente tem condições de multiplicar por 10, por 15, por 20 o volume de vendas das cervejarias artesanais. Mas passamos por pontos muito importantes para chegar lá. A questão tributária, em nível estadual e federal, tem de ser estudada. Há uma batalha constante nossa para reduzir impostos, já que a gente não tem a mesma capacidade de investimento nem a escala das grandes marcas. Fica uma briga desigual. A gente não tem condições, hoje, de competir na gôndola por preço. Competimos porque fazemos produtos diferenciados — diz o presidente da AGM, Diego Machado.
Ele ainda provoca:
— Se houvesse uma cerveja comercial e uma industrial na tua frente, ambas com o mesmo preço... Qual tu compraria?
Artesanal? Especial? Industrial?
— Deixa eu começar te fazendo uma pergunta: o que é cerveja artesanal?
A provocação ao repórter, feita pelo cervejeiro holandês radicado no Rio Grande do Sul Hendrikus Klaas Van Enck, mostra que a questão é um problema até para os próprios fabricantes.
— O que é um artesão? O artesão é um artista. O artesão não é operador de um equipamento computadorizado. Ninguém faz cerveja realmente artesanal. Só em casa — conclui o holandês.
O conceito de "cerveja artesanal" é mesmo de difícil definição. Pensando ao pé da letra, a maior parte da produção de cervejas artesanais é, na verdade, industrial — ainda que em escala reduzida. Há quem prefira o termo "especial" para definir uma cerveja "mais natural", com maior variedade de sabores e distribuição principalmente local.
A verdade é que não há unanimidade. Mas o conceito pode ser abrangente o suficiente inclusive para contemplar produtos... industriais.
Para a norte-americana Brewers Association, que reúne produtores independentes, uma cervejaria artesanal ("craft brewer") precisa produzir menos de 6 milhões de barris por ano — números gigantescos se comparados à média de produção das microcervejarias brasileiras. Mais do que isso, é industrial. A marca desse tipo de bebida, defende a associação, é a inovação, o uso de ingredientes tradicionais e o envolvimento com a comunidade onde atua.
Glossário
ABV - Alcohol by Volume
Volume de álcool por volume de líquido. Expressa o teor alcoólico. Uma Belgian Blond Ale tem de 6% a 7,5% de ABV, enquanto uma Barleywine tem de 8% a 12%.
Ale
Pode referir-se:
- a um tipo de levedura que trabalha melhor em temperaturas mais elevadas (levedura de alta fermentação);
- à cerveja fermentada com essa levedura (tipo ale).
Drinkability
Facilidade em beber. Termo utilizado para designar a palatabilidade geral de uma cerveja. Quanto maior o "drinkability", mais vontade você tem de bebê-la.
IBU - International Bitterness Units
Unidades Internacionais de Amargor, na sigla em inglês. Escala referente ao amargor do lúpulo. Uma Weiss tem de 8 a 15 IBUs, enquanto uma IPA tem de 40 a 60.
Lager
Pode referir-se:
- a um tipo de levedura que trabalha melhor em temperaturas mais baixas (levedura de baixa fermentação);
- à cerveja fermentada com essa levedura (tipo lager);
- ao processo pelo qual a cerveja é maturada em temperaturas baixas por longos períodos de tempo (lagering).
Fonte: Diretrizes de Estilo para Cerveja do Beer Judge Certification Program (BJCP)