Não é só o apreço pela bebida alcoólica favorita dos brasileiros que motiva empreendedores a investir no negócio da cerveja artesanal. A impressão de que há cada vez mais pessoas dispostas a desembolsar um pouco a mais para consumir um produto menos industrializado também contribui, mas quem decide entrar no ramo aponta duas razões principais para isso: a vontade de oferecer algo diferenciado, mesmo com tantas cervejas já à disposição, e a intenção de ajudar a tornar o mercado brasileiro semelhante ao europeu e ao norte-americano.
É muito comum — tanto que chega a parecer obrigatório — que quem investe em cervejaria artesanal passe por um período de experimentação no Exterior. Um dos destinos preferidos, não poderia deixar de ser, é a Alemanha. Mas a Inglaterra, com seus pubs e pints, a República Checa, com sua tradição cervejeira (você sabia que nos restaurantes de lá também se encontra cerveja mais barata do que água?) e Holanda, de reconhecida qualidade na fabricação da bebida, aparecem entre os pontos que os brasileiros gostam de conferir antes de implementar sua microindústria.
— A cerveja que você encontra nesses lugares é, em geral, muito melhor do que a daqui. E as artesanais costumam ser só um pouco mais caras, então há um mercado muito forte para quem busca qualidade — explica Fernando Maldaner, um dos sócios da cervejaria Edelbrau, de Nova Petrópolis, que visitou países europeus antes de criar sua fábrica.
— Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos são países que já têm uma tradição em apreciar a cerveja artesanal. Aqui, estamos trabalhando para que isso se torne mais comum — afirma Guilherme Dreher, da Gram Bier, de Gramado.
Dreher é piloto de linha aérea — um comandante que decidiu investir no prazer terreno de uma boa cerveja. Nessa área, é frequente que os empreendedores sejam oriundos de outras profissões: há economistas, lojistas, marceneiros, assim como há enólogos e administradores de empresas. Em comum, a rigor, apenas o fato de que apreciam a mesma bebida.
Mas somente gostar de beber cerveja não faz com que ninguém dê certo nesse mercado. Para começar, sair das panelas de casa para chegar aos tanques de uma fábrica própria demanda considerável investimento. No caso das cervejarias artesanais gaúchas, esse capital inicial, especialmente no Interior, costuma vir das famílias, que têm lucro em outros ramos e apostam que os motivados jovens têm mesmo capacidade de fazer um produto que possa disputar espaço em um mercado já tão concorrido.
Há também quem consiga aporte inicial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou tome empréstimos na esperança de arrecadar o suficiente, em questão de poucos anos, para quitar a dívida — o que nem sempre acontece. A Associação Gaúcha de Microcervejarias estima que o número, compilado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que mostra um total de 44 cervejarias sendo abertas no Rio Grande do Sul em 2018, esconda outra realidade: a de que, na verdade, há muito mais empresas começando os trabalhos. Acontece que há muitas firmas fechando nesse ramo. Como o número final é um balanço de um ano para o outro, isso não aparece nos registros do governo federal.
— Fazer cerveja é fácil — explica Augusto Luz, sócio proprietário da Rasen, também de Gramado. — Vender é que é difícil.
O copo — ou taça, tulipa, caneco — pode ser visto como meio cheio ou meio vazio: a alta concorrência pode tanto levar à oferta de produtos melhores quanto representar uma saturação do mercado. Luz explica que transformar a paixão em negócio não é receita de sucesso. Para realmente conquistar, mais do que um consumidor eventual, de fato uma fatia do mercado, os cervejeiros artesanais estão tendo de se profissionalizar. Para isso, ele, assim como outros empresários que têm conseguido manter um negócio em crescimento por pelo menos mais de cinco anos, aposta na contratação de consultorias, na aproximação com o público e na oferta de bebidas variadas.
— Não é um negócio simples, esse — comenta Humberto Fröhlich, da Babel Cervejaria, na Capital. — Dá para dividir o cenários das microcervejarias no Rio Grande do Sul em dois momentos: antes de 2013 e depois de 2013. Quem veio antes fez seu nome, tem a marca, conquistou um público que, até então, estava começando a gostar da cerveja artesanal. Depois disso, a oferta aumentou muito, e a demanda nem sempre acompanha.
Outro pioneiro na fabricação e distribuição de cervejas artesanais, Francisco Assis Stürmer, da Cervejaria Barley, que foi fundada em Capela de Santana em 1992, explica que manter uma empresa no ramo envolve resistência. Além das dificuldades de conquistar o consumidor, há o assédio das grandes cervejarias. Muitas empresas outrora artesanais, ele exemplifica, já entraram para o rol de itens de fabricantes em escala industrial.
— Não tem ano em que eu não receba proposta de compra — confidencia Augusto Luz, da Rasen.
Tamanha oferta de cervejas artesanais também se explica justamente pela pressão da indústria em comprá-las. Há muitos anos, explica Stürmer, a aquisição dessas microcervejarias especialmente no Rio Grande do Sul levou mestres cervejeiros a perder o emprego — e a solução foi... ingressar em uma nova cervejaria. Um círculo que ajuda a explicar a quantidade de fabricantes no Estado, mesmo havendo um público potencialmente menor do que, por exemplo, em São Paulo.
No Rio Grande do Sul, há cervejarias em vários municípios. Mas Capital, Região Metropolitana e Serra — com destaque para Caxias do Sul, Gramado, Canela e Nova Petrópolis — despontam como os polos cervejeiros do Estado.
Nome controverso, sucesso local
O nome não é atraente. Mas o proprietário garante a qualidade do produto.
Em Novo Hamburgo, faz sucesso uma cervejaria artesanal chamada... Bossta. Há, claro, uma explicação para isso:
— Quando eu disse que começaria a produzir cerveja, meus amigos disseram: "Vai ficar uma bosta". Então resolvi escolher esse nome — diz o holandês Hendrikus Klaas Van Enck, conhecido como Henck, que em momento algum se arrepende de ter batizado sua fábrica de Bossta Beer.
Há quem torça o nariz para o nome. Mas Henck (foto ao lado) não está nem aí:
— Meus amigos que achavam que a cerveja ficaria uma bosta hoje sentam na mesa comigo para bebê-la!
Artesanal? Especial? Industrial?
— Deixa eu começar te fazendo uma pergunta: o que é cerveja artesanal?
A provocação ao repórter, feita pelo cervejeiro holandês radicado no Rio Grande do Sul Hendrikus Klaas Van Enck, mostra que a questão é um problema até para os próprios fabricantes.
— O que é um artesão? O artesão é um artista. O artesão não é operador de um equipamento computadorizado. Ninguém faz cerveja realmente artesanal. Só em casa — conclui o holandês.
O conceito de "cerveja artesanal" é mesmo de difícil definição. Pensando ao pé da letra, a maior parte da produção de cervejas artesanais é, na verdade, industrial — ainda que em escala reduzida. Há quem prefira o termo "especial" para definir uma cerveja "mais natural", com maior variedade de sabores e distribuição principalmente local.
A verdade é que não há unanimidade. Mas o conceito pode ser abrangente o suficiente inclusive para contemplar produtos... industriais.
Para a norte-americana Brewers Association, que reúne produtores independentes, uma cervejaria artesanal ("craft brewer") precisa produzir menos de 6 milhões de barris por ano — números gigantescos se comparados à média de produção das microcervejarias brasileiras. Mais do que isso é industrial. A marca desse tipo de bebida, defende a associação, é a inovação, o uso de ingredientes tradicionais e o envolvimento com a comunidade onde atua.
Glossário
ABV - Alcohol by Volume
Volume de álcool por volume de líquido. Expressa o teor alcoólico. Uma Belgian Blond Ale tem de 6% a 7,5% de ABV, enquanto uma Barleywine tem de 8% a 12%.
Ale
Pode referir-se:
- a um tipo de levedura que trabalha melhor em temperaturas mais elevadas (levedura de alta fermentação);
- à cerveja fermentada com essa levedura (tipo ale).
Drinkability
Facilidade em beber. Termo utilizado para designar a palatabilidade geral de uma cerveja. Quanto maior o "drinkability", mais vontade você tem de bebê-la.
IBU - International Bittering Units
Unidades Internacionais de Amargor, na sigla em inglês. Escala referente ao amargor do lúpulo. Uma Weiss tem de 8 a 15 IBUs, enquanto uma IPA tem de 40 a 60.
Lager
Pode referir-se:
- a um tipo de levedura que trabalha melhor em temperaturas mais baixas (levedura de baixa fermentação);
- à cerveja fermentada com essa levedura (tipo lager);
- ao processo pelo qual a cerveja é maturada em temperaturas baixas por longos períodos de tempo (lagering).
Fonte: Diretrizes de Estilo para Cerveja do Beer Judge Certification Program (BJCP)