Diferente da maioria das mães, que leem contos de ninar para suas crianças, Hilda Buchmann, 79 anos, ditou ao filho a história da formação do universo. O garoto era fascinado pelos planetas e suas constelações, mesmo sem nunca ter observado de fato os astros: Gilberto Buchmann nasceu com atrofia do nervo ótico, e nunca enxergou.
— A mãe leu a coleção, durante uns dois anos, ditando todos os pontos e vírgulas. E eu fui transcrevendo para os cadernos, em braile. Era toda noite, depois do trabalho. Só mãe mesmo pra fazer isso — agradece o homem, hoje com 53 anos.
A obra soma 3,2 mil folhas publicadas no sistema de leitura e escrita tátil, distribuídas em 36 cadernos de capa surrada. Reúne a cronologia dos estudos astrológicos, desde os primeiros indícios talhados em pedra até a década de 1980. Atualmente, está atualizada em versão digital pelo pesquisador, dedicado na busca de artigos e publicações científicas na internet.
Escolher uma atividade eminentemente visual surpreende quem passa a conhecer a história do morador do Centro Histórico de Porto Alegre. Espanta a ele mesmo.
— Até pra mim, admito, é um pouco estranho gostar de astronomia. Afinal, é a observação dos astros. Eu não posso fazer as observações em si, mas posso analisar e entender como o universo funciona — complementa.
A paixão pelo tema começou aos nove anos, quando sua tia leu anotações à mão do quinto ano primário. Curioso, o menino descarregou uma série de perguntas, muitas sem resposta. Passou a perseguir a compreensão do mundo e hoje ostenta, orgulhoso, o romance O Céu de Galileu. A ficção é misturada a fatos científicos e à biografia do astrônomo italiano.
Mochileiro e livro sobre os passeios
Gilberto tem curso superior de Letras, graduação alcançada em 2005 pela Unisinos. Além do português, se diz fluente em inglês, francês, italiano, espanhol e esperanto, e arranha um pouco de russo. O domínio sobre idiomas o ajuda também nas viagens abaixo da estratosfera: mochileiro, ele gosta de viajar sozinho, em especial pela Europa.
— Por que não viajar? Não enxergo, mas consigo conversar, sentir, ter uma imersão. Isso não tem preço. O cheiro das comidas, estar em algum lugar onde a História aconteceu. É maravilhoso — repete.
As andanças renderam um livro, Como eu Vejo o Mundo. O título ainda não foi publicado, pois o escritor não encontrou uma editora disposta a apostar na obra.
— Esse título é uma espécie de trocadilho. Viajar sozinho foi um desafio que eu me impus — explica.
É casado com Regina Westin, 56 anos. A esposa trabalhou durante um tempo de sua vida lecionando, para pessoas cegas, técnicas que reduzem os riscos de acidentes na rua. É objetiva ao definir a maior chaga enfrentada por quem tem qualquer grau de deficiência:
— Falta de informação. Não conhecer dificulta a inclusão.
A mãe de Gilberto escuta ele dizer que, na sociedade, é desacreditado quando mira objetivos tidos como inalcançáveis devido a sua condição. Concorda com um sinal de cabeça e acrescenta outra característica do filho, igualmente ímpar.
— Ele fica no cantinho dele, lê e escreve uma folha todinha. Se chega no final e tem uma palavra errada, amassa a folha, joga fora e começa tudo de novo — demonstra Hilda, como se amassasse o papel em forma de uma bolinha de papel ilegível.