Um mastro em ferro branco segura o sino que anuncia, com quatro badaladas duplas, o início das atividades dos marinheiros pela manhã. Em frente ao contramestre encarregado pelo badalo, o supervisor de serviço sopra seu apito sete vezes, em melodia repetida, enquanto a bandeira nacional é içada por um contramestre e amparada por outro marinheiro. A cena é uma cerimônia padrão das embarcações militares da Marinha do Brasil, e acontece diariamente também em terra firme, no pátio da Capitania Fluvial de Porto Alegre, na Rua dos Andradas, a 270 metros da margem mais próxima do Guaíba.
A tradição naval remonta aos tempos em que as embarcações não tinham energia elétrica nem relógio. O sino marcava a passagem do tempo de cada turno de serviço, e os silvos do apito são equivalentes ao toque da corneta do Exército e da Aeronáutica para executar comandos. O cerimonial, atualmente, é um símbolo das origens aquáticas do trabalho que se estende em terra firme, já que os turnos são marcados com horários fixos e não mais pela iluminação solar como antigamente.
Ainda que originalmente a Rua dos Andradas tivesse sido apelidada de Rua da Praia, nada resta por ali que lembre o ambiente aquático além dos sons do cerimonial duas vezes ao dia. Os moradores e comerciantes da região já se acostumaram com eles, mesmo sem terem certeza da origem ou significado da combinação de sons e comandos de voz.
— É algo que se fazia em alto mar — arrisca Elson Simonetti, proprietário da Andradas Café e Confeitaria, que fica em frente à Capitania, e também morador da mesma rua: — Estou aqui há 30 anos e eles tocam todos os dias, é tão certo quanto os sinos da igreja — ele garante.
Contrastes urbanos no ritual marítimo
A tarde da segunda-feira (7) terminava com tons de laranja ao oeste do Centro Histórico. No portão em grade da Capitania, o marinheiro Piazza, 20 anos, e o marinheiro Brum, 21, cumpriam suas rotinas de serviço enquanto conversavam com o recruta Gomes, 19. Ao fundo, o sargento Tiago, 15 anos de corporação, observava o movimento dos mais novos antes do cerimonial. Acima deles, duas caturritas faziam barulho por um batalhão inteiro. Faltando cinco minutos para o pôr do sol, o sistema de som convoca:
— Atenção, Capitania Fluvial de Porto Alegre! Sinal para a bandeira.
Piazza e Brum caminham até o espaço do mastro e preparam as cordas - as adriças, no termo militar - que sustentam o pavilhão nacional. Às 19h14min, o sargento Tiago se junta a eles com o apito em punho. Como se as aves também entendessem o ritual que se aproximava, deixam o ninho da árvore que rivaliza com o mastro e alçam voo pela Andradas em direção a Praça da Alfândega. Na calçada, no entanto, não há nenhuma alteração na rotina dos pedestres. Militares deixam o trabalho dos quartéis do entorno e civis passeiam com seus cachorros de estimação enquanto outros caminham por exercício físico.
Cinco minutos se passam sem que nada seja dito ou feito pelos quatro militares. Em forma, porém em posição de descanso, eles aguardam o momento exato do pôr do sol para iniciar a cerimônia. O único movimento é do braço esquerdo de Tiago, que verifica o relógio de pulso duas vezes. A última para garantir que é momento de ordenar os marinheiros a posição de “sentido” - pés unidos e braços prontos para começar a ação, neste contexto.
— Em continência, arria! — indica o sargento, um minuto depois, dando início à descida da bandeira com o primeiro de sete silvos, todos iguais, com um tom maior entre dois feitos com a mão dele fechada em volta do instrumento metálico.
Brum puxa a corda que traz a bandeira enquanto Piazza observa em continência. Com o pavilhão ao alcance de ambos, a flâmula é desamarrada e dobrada simetricamente pela dupla de marinheiros. Está terminado o dia de trabalho da Capitania Fluvial de Porto Alegre, que só recomeçaria dentro de 11 horas, com quatro badaladas duplas no sino.