A morte da universitária Ana Elisa Andrade Genaro Oliveira, 26 anos, é o desfecho trágico de uma série de ilegalidades que ocorriam a portas abertas às margens da BR-116, na Ilha das Flores, em Porto Alegre. Nem o restaurante, nem o evento que ocorria no domingo à noite (18) e nem a marina que dá nome ao local poderiam estar em funcionamento junto à Delta do Jacuí.
Ana faleceu após o desabamento de um deque, que fez com que cerca de 50 pessoas caíssem no Rio Jacuí. Após ficar submersa por um tempo, ela teve uma parada cardiorrespiratória. Mesmo socorrida e encaminhada ao Hospital de Pronto Socorro (HPS), não resistiu. Oito pessoas receberam atendimento médico.
— É importante ressaltar que não se trata simplesmente de um estabelecimento sem alvará. Nem poderia existir bar ali porque nenhum estabelecimento é autorizado a funcionar na região das ilhas após as 22h. Foi uma festa clandestina realizada por uma produtora, com o aluguel de um espaço para tal. Todas essas partes deverão ser responsabilizadas — declara o secretário-adjunto de Desenvolvimento Econômico, Vicente Perrone.
Conforme a prefeitura, o evento clandestino se chamava Aloha Sunset, e foi organizado por uma empresa que se apresenta como Elyte Eventos.
O evento ocorreu no deque do Bistrô da Marina, espaço que fica em frete à Marina das Flores, embora não fizesse parte do mesmo empreendimento. Ele se apresentava em redes sociais como bistrô de terça a domingo das 9h às 22h, com disponibilidade para casamentos, formaturas e eventos corporativos. Nenhuma dessas operações, conforme a prefeitura, estão autorizadas no espaço.
Conforme o Executivo, o local tem alvará válido para funcionar no endereço Rua do Pescador, 21, que não fica às margens do Rio Jacuí e sim do outro lado da via, mas estaria operando irregularmente em frente à marina. Nas redes sociais do empreendimento, o endereço aparecia como Rua do Pescador, número 22, o mesmo da Marina das Flores. O Instagram do bistrô foi retirado do ar às 15h10min.
Já a Marina das Flores, operava em um espaço de quatro hectares junto ao Rio Jacuí e ao Arroio das Traíras. O site apresenta o empreendimento como um "um pool de empresas e brokers independentes que se utilizam deste nome por conveniência e oportunidade". Essas empresas atuariam "na intermediação de lanchas, garagem náutica para lanchas e jet skis, abastecimento de combustível, escola e habilitação náutica."
Ainda conforme o site da Marina das Flores, o local conta com "a marina mais moderna do Rio Grande do Sul" e oferece "guarda de embarcações, loja náutica, posto de abastecimento de combustíveis, centro de eventos e quadra de tênis". Sobre o restaurante, o site diz que ele fica em frente e "pertence a terceiros, sem vínculo à Marina".
Conforme a prefeitura, nada disso poderia estar em operação. Por se tratar de uma área superior a 250 metros quadrados e situado em uma área de proteção permanente, para uma marina funcionar no local seria necessária uma licença de operação da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), nunca apresentada à prefeitura.
Conforme a Fepam, o empreendimento - cujo nome legal é Rivestone Serviços Náuticos Eireli - ingressou com um pedido de Licença de Regularização Ambiental em julho de 2020. Após vistorias, foram requisitados mais documentos ao empreendedor. Eles foram fornecidos em 2 de julho deste ano e o processo se encontra em análise.
Por estar localizada em uma unidade de conservação, a emissão da licença fica condicionada ainda a uma autorização dessa unidade. Um parecer favorável foi emitido em abril de 2021, com condicionantes a serem incorporadas na futura licença de operação, ainda não obtida.
A Fepam esclarece que todas as análises do órgão giram em torno do impacto ambiental, não à integridade de estruturas. E no caso da área em que ocorreu o acidente, nem o restaurante e nem o deque fazem parte da área que passa pelo processo de regularização.
Uma vez autorizado pela Fepam, o responsável pelo empreendimento deveria solicitar um Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) e um Plano de Prevenção e Proteção contra Incêndios (PPCI) junto ao Corpo de Bombeiros. De posse desses documentos, a prefeitura poderia enfim autorizar a abertura do empreendimento somente como marina.
O Ministério Público já entrou em contato com a prefeitura para apurar as questões de licenciamento dos empreendimentos envolvidos. A investigação criminal está por conta da 4ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre.
Procurada por GZH, a Marina das Flores, por meio de seu advogado, Rafael Ariza, ressaltou que não tem vínculo com o Bistrô da Marina, estabelecimento onde ocorreu o acidente, e que não tem conhecimento sobre irregularidades com alvará do local. Reiterou, porém, que "dentro da área da marina não há edificação passível de ter um restaurante."
O Bistrô da Marina não respondeu aos contatos telefônicos entre 11h32min e 16h27min pelo telefones divulgados nas redes sociais do estabelecimento e tampouco respondeu a mensagens por WhatsApp.
A vítima
Ana Elisa, de 26 anos, era natural de Contagem, em Minas Gerais, e desde o segundo semestre de 2018 cursava medicina veterinária na Ulbra de Canoas. Atualmente residia em Ivoti. Em perfis de redes sociais, ela se definia como "mineira, futura médica veterinária, escorpiana, amazona, autêntica, sem medo de ser feliz". A universitária era praticante de hipismo e chegou a disputar competições pela Sociedade Hípica de Minas Gerais, em 2015.