O pico da pandemia de coronavírus levou Porto Alegre a bater o seu recorde de sepultamentos em março de 2021. Foram 2.002 até o dia 30 deste mês, entre enterros e cremações, em cemitérios e memoriais da cidade. O número considera somente os falecidos que tiveram seus corpos encomendados na Capital, já descontados os 40% que tradicionalmente falecem em hospitais de Porto Alegre, mas são sepultados em municípios da Região Metropolitana e do Interior.
A superação da marca de dois mil funerais é considerada histórica. Não há, nos registros oficiais, nada semelhante.
— Estou no ramo desde 1978 e nunca vi um número desses — atesta Ary Bortolotto, diretor da funerária, cemitério e memorial Angelus e presidente da Associação das Empresas Funerárias de Porto Alegre.
O recorde anterior também ocorreu dentro da pandemia, com 1.269 sepultamentos em agosto de 2020. Nos últimos cinco anos, a média dos meses de março ficou em 767 enterros e cremações, pouco mais de um terço do verificado neste período em que Porto Alegre transformou-se em um dos núcleos mais fatais da pandemia no mundo.
— Com certeza absoluta, é um recorde histórico da cidade — diz Vicente Perrone, secretário-adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo, pasta que abriga a Comissão Municipal de Serviços Funerários.
Apesar dos números superlativos, não houve - e não haverá, asseguram os especialistas - um colapso do sistema funerário em Porto Alegre. Empresários do setor afirmam que não serão vistas por aqui cenas como as flagradas em Manaus e São Paulo, com covas em série abertas uma ao lado da outra, ausência de vagas em cemitérios ou mesmo corpos insepultos. O sistema está dando conta da alta histórica, embora os esforços físicos e psicológicos estejam abundantes.
— Um homem veio aqui enterrar a mãe em uma semana. Na outra, voltou para fazer o funeral da esposa e da filha. Naquele momento, tive que ir embora da funerária. Isso mexe com a gente. Estamos vivendo uma tragédia — diz o experiente Bortolotto, alertando para os traumas psicológicos da covid-19.
Ele fez, no início da pandemia, um levantamento junto às 23 funerárias de Porto Alegre e concluiu que elas teriam capacidade, no limite, para atender 4,8 mil sepultamentos por mês, mais do que o dobro da demanda recorde deste março.
O presidente da Associação Sul-Brasileira de Cemitérios e Crematórios, Gercy Perrone Fernandes, diz que Porto Alegre costuma ter um estoque de cinco mil vagas em jazigos. Fernandes também é diretor do Cemitério Parque Jardim da Paz, onde há capacidade para construir novos 70 mil abrigos para urnas funerárias. No total, a ampliação de vagas na Capital poderia chegar a 80 mil.
Outro facilitador é o fato de a legislação permitir que os jazigos alugados, após três anos de uso, possam ser desocupados com a exumação do corpo caso a família não renove o aluguel. Nestes casos, os restos mortais são identificados e guardados no ossário, para o caso de parentes decidirem retirá-los posteriormente. Com isso, há rotatividade, higienização e reaproveitamento das gavetas fúnebres. Fernandes salienta o perfil mais “precavido” da população local: atualmente, cerca 40% dos sepultados em Porto Alegre possuem um jazigo familiar, o que também evita sobrecargas.
Com certeza absoluta, é um recorde histórico da cidade
VICENTE PERRONE
secretário-adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo
O colapso foi evitado, explicam os especialistas do ramo, pela robustez do sistema funerário porto-alegrense, considerado referência para o Brasil. Houve uma modernização no final dos anos 1990, quando as 23 funerárias remanescentes passaram a atuar como permissionárias da prefeitura.
O regramento começou a exigir padrões de qualidade e duas dezenas de empresas que não se adequaram perderam o direito de atuar no setor, sob fiscalização municipal. As empresas são responsáveis por financiar e operar a Central de Atendimento Funerário (CAF), balcão em que são emitidas as guias de sepultamento que permitem a retirada dos corpos nos hospitais. Os cemitérios somam 19 em Porto Alegre, a maioria deles privados, filantrópicos ou religiosos, e atuam de forma independente. Os dois crematórios da Capital também são empresas privadas.
“O que enxergamos mais exausto deixamos descansar em casa”
Victor Burzlaff Costa trabalha há 12 anos no Cemitério Parque Jardim da Paz e, atualmente, é coordenador da equipe de sepultadores. Ele afirma jamais ter visto tamanha demanda no local. Em março de 2021, comparado ao mesmo período do ano anterior, os enterros no local aumentaram 130%. Costa diz que o psicológico é afetado, mas em menor escala para quem está acostumado ao serviço funerário. O mais pesado, diz, é o cansaço físico pelas jornadas alongadas.
— Triplicaram os sepultamentos e estamos trabalhando mais. A gente (sepultadores) se olha bastante no campo. O que enxergamos mais exausto deixamos descansar em casa — comenta Costa, que comanda uma equipe de 25 profissionais.
Diretor do cemitério, espaço de 20 hectares, incluindo 1,7 hectare de área de preservação ambiental, Gerci Perrone Fernandes diz que há acompanhamento psicológico junto aos 80 funcionários para evitar que eles “levem coisas negativas para casa”.
Geronildo Esper é supervisor-geral do Jardim da Paz, único vínculo empregatício que teve na trajetória pessoal. Ele começou aos 20 anos como servente e, quatro décadas depois, já sexagenário, segue percorrendo diariamente os campos de grama meticulosamente aparada do cemitério da Lomba do Pinheiro, fundado em 1980.
— Acostumei a ver o encerramento dos ciclos normais da vida. Claro que sempre há acidentes que podem interromper esses ciclos, mas nada comparado ao que estamos vivendo agora — diz Esper.
Puxando pela memória, ele recorda do acidente aéreo da TAM, em 2007, no voo que saiu de Porto Alegre rumo a São Paulo, como um momento trágico em que ele presenciou o velório e sepultamento de diversas vítimas no Jardim da Paz. Mas nada que tenha alcançado uma dor tão perene e repetida quanto a pandemia, conta.
As famílias não podiam chegar nem perto e acabavam se voltando contra nós. Vinham para cima da gente naquele início.
VICTOR BURZLAFF COSTA
Chefe dos sepultadores do Jardim da Paz
As equipes que atuam nos cemitérios já passaram por sufoco ao longo deste período. Para Costa, chefe dos sepultadores, o estresse físico é maior agora, mas o psicológico foi mais pressionado entre março e agosto de 2020, quando uma norma sanitária proibia o velório e determinava o enterro breve, praticamente sem cerimônia, das vítimas da covid-19.
—As famílias não podiam chegar nem perto e acabavam se voltando contra nós. Vinham para cima da gente naquele início. Tentávamos abordar um familiar mais calmo para explicar a situação e apaziguar — recorda.
O diretor da empresa diz que, a partir da próxima semana, aumentará o ritmo de construção de jazigos para a reposição de vagas ocupadas. Serão 200 novos por mês. A equipe de construção foi ampliada em 30%. O objetivo é, mesmo diante da alta demanda, manter o estoque padrão de cinco mil gavetas em Porto Alegre para evitar surpresas pela frente.
Funcionária que perdeu a mãe por covid-19 se culpou pelo óbito
A média de sepultamentos diários feitos pela funerária, cemitério e crematório Angelus era de 15 por dia em tempos normais, mas a alta deste mês de março de 2021 levou a empresa a prestar 47 serviços em apenas um dos períodos de 24 horas, mais do que o triplo do habitual.
A demanda elevou o contato de funcionários da funerária com familiares de falecidos possivelmente contaminados pelo coronavírus. Mais de 20 empregados da Angelus, do total de 80, já contraíram o vírus desde o início da pandemia. E sobrevieram óbitos nas famílias.
— Uma funcionária nossa perdeu a mãe e passou a se culpar, acreditando que foi ela quem transmitiu. Ela acabou pedindo demissão — lamenta Carlos Alexandre de Araújo, gestor de operação do cemitério e funerária Angelus.
Outro funcionário da empresa sofreu a morte do pai e, até os dias finais de apuração desta reportagem, estava com a mãe internada em leito de UTI. Localizado no bairro Medianeira, em Porto Alegre, o Memorial e Crematório Angelus fica no terreno onde existiu, no passado, o Cementerio Espanõl, fundado por imigrantes espanhóis em 1906. O diretor, Ary Bortolotto, é enfático ao afirmar que o setor está na linha de frente dos serviços relacionados à pandemia, cujos funcionários necessitam de imunização.
— A vacina é fundamental para nós. Estamos em uma insegurança gigante. Temos gente afastada e perdendo familiares — apela Bortolotto.
A vacina é fundamental para nós. Estamos em uma insegurança gigante. Temos gente afastada e perdendo familiares
ARY BORTOLOTTO
Diretor do memorial e crematório Angelus
No ramo, é citado com frequência o caso da Funerária São Pedro, que está com cinco funcionários afastados no momento, de um total de 13, por conta de infecção por coronavírus. A empresa já chegou a ter seis afastamentos simultâneos em decorrência da covid-19.
— Com seis pessoas afastadas, num cenário em que o número de sepultamentos triplicou, nós chegamos a um esgotamento físico e emocional sem precedentes. Os funcionários estão com medo e levam isso para casa — diz Glauco Ribas, sócio-administrador da Funerária São Pedro.
Presidente da Associação Sul-brasileira de Cemitérios e Crematórios, Gerci Perrone Fernandes diz que a entidade ingressou com ação judicial requerendo prioridade na vacinação para o setor. Diante do insucesso em primeira instância, a instituição apresentou recurso ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Os dirigentes do setor dizem que o afastamento em massa de trabalhadores, eventual decorrência das infecções por coronavírus, pode representar um risco de colapso devido à escassez de mão de obra. Eles argumentam que os empregados de funerárias, cemitérios e crematórios precisam de treinamento, de conhecimentos de legislação e de técnicas apuradas como a operação de forno. Por isso, afirmam que o material humano é de difícil reposição.
— Não é qualquer pessoa que eu contrate emergencialmente que vai ter a preparação técnica, o conhecimento, o manuseio de documentos e o trato adequado com o familiar enlutado. São anos de treinamento — alerta Ribas.
A prefeitura de Porto Alegre é cautelosa ao assumir a responsabilidade por passar os agentes funerários à frente. O município diz que segue estritamente a ordenação dos grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI), definida pelo Ministério da Saúde.
— O PNI envia as vacinas já carimbadas. Isso é composto pelo Ministério da Saúde e, depois, pela Secretaria Estadual da Saúde. Não cabe à prefeitura (modificar) e o MP (Ministério Público) está de lupa em cima disso — diz Vicente Perrone, secretário-adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo.
Um dos argumentos dos agentes funerários, de que em outras cidades a categoria já recebeu o antídoto, não sensibilizou até o momento as autoridades na Capital.
— Isso é uma responsabilidade da cidade que não cumpriu o plano (PNI). Não nos cabe julgar, mas, provavelmente, vamos ouvir muito o assunto de cidades que priorizaram grupos que não estavam no PNI — avalia o secretário-adjunto.
A última versão do “plano nacional de operacionalização da vacinação contra a covid-19”, lançada em 15 de março, incluiu os “funcionários do sistema funerário” nos grupos prioritários, na categoria "trabalhadores da saúde". Contudo, como trata-se de uma classe extensa, com vários subgrupos, ainda não chegou a vez dos agentes na Capital.
Gestor da Funerária São Pedro, Ribas diz que, atualmente, uma das expectativas do setor é articular junto a deputados federais a aprovação de projeto de lei que atribua preferência aos agentes funerários em campanhas de vacinação.
— Estamos tão expostos quanto os médicos e enfermeiros que atuam nas UTIs — diz Ribas.
Instituição de 1850 teve crescimento de até 230% na demanda
Um dos mais antigos do Brasil, o Cemitério Santa Casa, fundado em 1850, registrou crescimento de 230% nas cremações, feitas em convênio com o Crematório Metropolitano, se comparados os períodos de março de 2021 com o mesmo mês de 2020.
Em expansão, a cremação já é a opção escolhida pelos familiares de cerca de 30% dos mortos em Porto Alegre, a cidade que mais transforma os corpos em cinzas no Brasil, em números proporcionais à população.
— Nunca houve demanda como essa. Não temos isso nos históricos — atesta Severo Pereira, supervisor administrativo do Cemitério Santa Casa, entidade vinculada ao complexo hospitalar homônimo.
O amplo cemitério, de 10 hectares e 42 funcionários, tem três setores diferentes para sepultamento além da modalidade da cremação: as áreas histórica e popular, ambas pagas, e o Campo Santo, obra social em que são enterradas pessoas carentes sem custos aos familiares.
Na zona histórica do Santa Casa, delineada por mausoléus e obras de arte e de arquitetura que lembram, guardadas as proporções, o cemitério da Recoleta, atração turística em Buenos Aires, estão enterrados o ex-governador Júlio de Castilhos e o músico Teixeirinha, entre outros notórios.
Nunca houve demanda como essa. Não temos isso nos históricos
SEVERO PEREIRA
Supervisor administrativo do cemitério da Santa Casa
Nos sepultamentos pagos, o Santa Casa registrou crescimento de 128% em março de 2021, comparado a igual período do ano anterior. Já os enterros gratuitos, no Campo Santo, aumentaram 113% na mesma época.
— Não estamos com risco de deixar nosso cliente desassistido. A rotina está mais puxada e extensa para todos, mas temos duas frentes de funcionários para revezar, ambas treinadas — assegura Pereira.
O Campo Santo, que pode ser observado por uma das calçadas do bairro Medianeira, do lado externo, tem registrado diariamente um intenso fluxo de trabalhadores abrindo novas covas e fazendo breves sepultamentos. Assim como outras instituições, o Cemitério Santa Casa tem de observar a regra de ocupação de 30% das capelas para os velórios, os quais têm sido mais rápidos por opção de segurança, com duração de até quatro horas.
Fábrica de urnas funerárias também registra alta
A Funerária Petzhold é a única do ramo em Porto Alegre a atuar na organização dos atos fúnebres e a manter a fabricação das urnas, popularmente conhecidas como caixões. A empresa, localizada em antigo imóvel do bairro Navegantes, vai completar um século de existência em 2022.
Na época da sua inauguração, em 1922, a cidade de Porto Alegre recém havia sido assombrada pela gripe espanhola quatro anos antes. O administrador Ronaldo Ritter, da terceira geração familiar de proprietários da funerária, diz que a demanda por esquifes “disparou”. Neste março de 2021, a Petzhold entregou 360 urnas até o penúltimo dia do mês. No ano anterior, haviam sido 150 no mesmo recorte temporal.
— Nunca se imaginou essa demanda, considerando os diferentes portes que tivemos como empresa ao longo do tempo — diz Ritter.
Ele aponta que, atualmente, a Petzhold responde por 8% do mercado de ataúdes em Porto Alegre. Por ser de menor porte, destaca-se pelos serviços artesanais, sob medida, como as urnas reforçadas para obesos.
A única coisa que não nos faltou foi tinta. De resto, faltou de tudo, até parafuso
RONALDO RITTER
Funerária Petzhold
Diante do estouro de óbitos, Ritter relata ter sofrido desde o início da pandemia com escassez de insumos. Uma urna, se confeccionada em ritmo de preferência, leva pelo menos um dia para ser adequadamente finalizada. O peso mediano é de 25 quilos por peça comum.
São utilizadas madeira MDF, forros em tecido TNT e cetim, ferragens, tintas, verniz e adornos metálicos e plásticos. Os trabalhos são minuciosos e envolvem cortes angulados de madeira, detalhes em que qualquer centímetro - ou milímetro - impedem o bom acabamento de um serviço. O arremate é artístico, com o uso manual do formão para esculpir os tampões dos esquifes.
— A única coisa que não nos faltou foi tinta. De resto, faltou de tudo, até parafuso. Ainda hoje, passo a maior parte do tempo atrás de material. Agora estou atrás de MDF. De qualquer forma, conseguimos atender nossos clientes. Não vai faltar — afirma Ritter, que está com seis funcionários em jornada estendida.
O próprio Ritter tem sentido a alta da demanda na rotina: atendendo em regime de plantão, já se acostumou a ser localizado de madrugada por familiares de falecidos que precisam de auxílio funerário.
Frei franciscano fez 13 encomendas em uma tarde
Em duas oportunidades neste mês de março, o frei franciscano Rodrigo André Cichowicz, da Paróquia Santa Clara, no bairro Lomba do Pinheiro, fez a encomendação de 13 falecidos em apenas uma tarde no Cemitério Jardim da Paz. Antes da pandemia, os cerimoniais, feitos nas capelas, chegavam ao máximo de oito por turno, esporadicamente.
— É um momento de oração com a família. Enquanto Igreja Católica, a encomendação é o ato religioso de entregar a pessoa a Deus. Vivemos um momento muito triste, para não dizer chocante, para toda a humanidade. Nossas palavras são de que isso não é da vontade de Deus, não é nenhum castigo. Acima de tudo, é importante, independente de qual seja nossa religião, que saibamos tirar lição desse momento para vivermos em ambientes mais humanitários, éticos e solidários — diz o frei.
Na tarde desta terça-feira (30), Marco Almeida sepultou o pai, Maurílio, vítima de complicações da covid-19, no Jardim da Paz. Com o sentimento de quem perdeu um familiar, Marco pede celeridade na vacinação e avalia que países ricos poderiam compartilhar mais os direitos de produção e as doses de vacinas com os subdesenvolvidos, uma espécie de quebra de patente voluntária.
— Essa doença veio para nos tornar mais humildes, mas nem todos aprendem — diz Marco.
O frei Rodrigo, que conforta famílias em velórios, afirma que é fundamental manter a esperança.
— Tentamos ser um sinal de Deus no meio de uma humanidade que está doente. O covid é uma realidade sofrida, mas passageira. Isso não decreta o fim dos tempos. Jamais.