Você já deve ter deparado com um empreendedor caracol por aí. Ele costuma se locomover em um carro adesivado divulgando um produto que não raro leva o nome do empresário, um perfil no Instagram e um número para receber pedidos.
Conforme a pandemia de coronavírus se prolongou, um dos fenômenos que proliferaram por metrópoles como Porto Alegre foi o das empresas em que a mesma pessoa recebe encomendas, produz e entrega os produtos.
São pequenos negócios sem fachada, quase sempre enquadrados como Micro Empreendedores Individuais (MEI), cuja clientela fiel está praticamente toda dentro do celular. Porém, eles preferem os grupos de WhatsApp aos aplicativos de entrega, que cobram mais de 25% pelo serviço. O produto é definido pela especialidade pessoal do empresário.
– Eu já havia tentado vender de tudo para complementar renda. Lingerie, semijoias... Até que uma amiga aconselhou: Adrics, por que não vende o teu feijão? Todo mundo ama o teu feijão. Deu muito certo. Quem tem um bom feijão já tem meio-caminho andado para uma refeição – conta a publicitária Adriane Radke, que hoje dedica de dois a três dias da semana ao Feijão da Adrics (@feijaoadrics), um para a feira e dois para a produção.
O sucesso de um caracol depende de qualidade e dedicação excepcionais do empreendedor ao produto, o que é percebido e valorizado pelo cliente como um diferencial. A relação de cumplicidade entre o empreendedor e o cliente eventualmente fará com que este marque o perfil da marca em suas redes sociais ou – o melhor dos mundos – que recomende o produto em grupos de vizinhos, caindo no gosto de uma clientela de uma mesma região.
– No meu caso, foi um condomínio em frente ao Parque Germânia. Um dia, acordei e vi dezenas de pedidos para seguir o perfil no Instagram. Descobri que o meu feijão havia chegado a um grupo de vizinhos. Vendo bastante a solteiros e jovens casais, e cada vez mais os sabores veganos – conta Adrics.
Filho de um uruguaio com uma brasileira, Daniel Matturro, 46 anos, é outro que já fez de tudo – de vendedor de baterias automotivas a árbitro de basquete – até concentrar esforços na tradição de família de boa mão para a cozinha.
Mesmo antes da pandemia era bem raro me perguntarem se tenho uma loja. Se a pessoa pergunta sobre tamanhos, cores e preços e você responde, ela não sente mais falta de interação. É até um pouco triste, mas as pessoas não olham mais tanto para os lados. Olham muito mais para o celular, para o Instagram
MÁRCIA DOMINGOS DOS SANTOS
Empresária da Tuim Artesanatos
– Lembro bem que o meu “investimento inicial” foi R$ 300, lá em 2012. Fui com a minha mãe ao Carrefour fazer rancho para montar marmitas para vender a R$ 10 com refri. A divulgação era com papeizinhos que eu mesmo imprimi e cortei para colocar em caixas de correspondência.
Com o tempo, percebeu que o seu diferencial era mesmo a cozinha italiana. Moldou a Matturro Pastifício Artesanal (@matturropastificioartesanal), especializada em molhos, massas frescas e, principalmente, pizzas com farinha artesanal. Depois de nove anos vendendo e entregando comida, a principal lição foi a vantagem de organizar o negócio dentro da rotina.
– Conforme você for organizado, a vida vai ser mais dura ou mais leve. Tem coisas que eu faço todo dia, como ralar queijo, fracionar porções. A partir das 16h eu estou aberto a pedidos. Às 18h, ligo o forno. Às 19h, encerro e saio para as entregas. É curioso, mas neste momento que é o mais complicado para muito empresário, para mim, nunca foi melhor – conta.
A pandemia que ajudou Daniel mudou a forma de Patrícia Zoch Lopez, 49 anos, trabalhar. Depois de um ano de pesquisas e muitos testes de sabores com os mascotes dos amigos, ela e uma amiga, Simone Alves Brito, montaram a Amigo Saudável (@amigo.saudavel), marca de petiscos para pets sem conservantes. Porém, a covid-19 fechou temporariamente o principal canal de distribuição do produto. Levar o negócio nas costas foi a solução.
– Fazíamos bastante feiras, e isso nos dava visibilidade. Na pandemia, elas pararam e gente teve de aprender a se virar no ambiente virtual para vender e depois distribuir. Facilita o mercado de pets estar em expansão e ser grande a procura por comidas saudáveis. As pessoas pensam: se eu não como comida processada, por que vou dar ao meu cãozinho? Nossos clientes não falam sobre os produtos, mas os tutores sim.
Todo empreendedor caracol de sucesso está fadado a deixar de sê-lo. No caso de Daniel, por exemplo, ele já teria demanda o suficiente para contratar um motoboy para entregas, mas ainda reluta em descontar esse custo do faturamento. A parceria com um app de entrega também é analisada, mas a "mordida" cobrada pelas empresas e o horário em que teria de atender ainda são proibitivos. O que nenhum parece ter é a ambição de um ponto físico.
– A pessoa que é da gastronomia tem na imaginação um restaurante, o olho no olho com o cliente, mas eu aprendi a encontrar realização de outras formas. Em receber um elogio sincero, uma foto da pizza na mesa do cliente. E estou louco de faceiro por estar de mudança para uma residência com uma cozinha separada só para mim. Quase um ateliê – conta Daniel, empolgado.
Márcia Domingos dos Santos, que vende artesanatos de chimarrão da marca Tuim (@tuimartesanatos), começou como caracol há três anos, mas já deixou o casco para trás. Lembrando sempre de divulgar o WhatsApp no prendedor que embalava seus produtos, formou clientela suficiente para se concentrar somente na produção e na venda dos adereços para o chimas. Para impulsionar a produção do ateliê, contratou dois funcionários, fez parcerias com outros quatro e passou a entregar pelos Correios. Embora pense em expandir os negócios, a loja física está fora de cogitação:
– Agora, tem essa questão da pandemia. Mas mesmo antes era bem raro perguntarem se tenho uma loja. Se a pessoa pergunta sobre tamanhos, cores e preços e você responde, ela não sente mais falta de interação. É até um pouco triste, mas as pessoas não olham mais tanto para os lados. Olham muito mais para o celular, para o Instagram. Então é ali que você deve estar.
10 mandamentos do caracol
Baseado nos depoimentos dos empreendedores desta reportagem, confira os 10 mandamentos para levar um negócio de sucesso por contra própria
- Diversifique em torno de um diferencial: a marca vai vender a sua especialidade, mas diversifique em torno dele. Convide a clientela e experimentar novidades.
- Poste com frequência: quanto mais atualizações em redes sociais, mais o seu produto estará exposto e mais a sua marca passará a impressão de um produto atraente.
- Capriche nas fotos e nos textos: erros ortográficos e fotos feias são como uma vitrine bagunçada. Capricho nos detalhes demonstra profissionalismo.
- Divulgue bem os contatos: mantenha o perfil nas redes sociais e o número de contato sempre bem visíveis nos materiais de divulgação. Eles são a porta de entrada do negócio.
- Organize a rotina: para não virar escravo do trabalho, defina os melhores horários para executar cada tarefa e respeite esses limites. Convém ter um celular dedicado somente a isso.
- Enfrente os números: não é raro um caracol iniciante pagar para trabalhar sem perceber. Saiba em detalhes seus gastos com matéria-prima e o tempo para realizar entregas para melhor mensurá-los.
- Interaja com os clientes: um diferencial do caracol frente às lojas virtuais ou apps é ser uma pessoa de verdade interagindo com o cliente. Se aproveite disso sendo prestativo, simpático e pedindo feedbacks.
- Incentive recomendações: ouvir elogios espontâneos dos clientes é bom, mas melhor ainda é eles espalharem aos amigos e vizinhos. Incentive marcações em redes e indicações a grupos.
- Regionalize o serviço: é melhor atender bem em um raio delimitado do que tentar uma expansão que eleve custos e comprometa a qualidade do serviço. Só expanda se conseguir mantê-la.
- Saiba a hora de deixar o casco: se o negócio der certo, chegará a hora de contratar assistentes, atender por apps e assim por diante. O importante é saber mensurar o custo de cada passo para não dá-lo antes da hora certa.