Aqueles que tiverem os olhos atentos perceberão que a paisagem sob o Viaduto da Conceição, no Centro Histórico de Porto Alegre, está levemente diferente. Isso porque a ONG Cozinheiros do Bem — iniciativa que distribui marmitas a moradores de rua da Capital — retirou a marretadas alguns blocos de concreto que ficavam nesta área e os substituíram por flores.
A ação simbólica é inspirada no ato do padre Júlio Lancellotti, que quebrou pedras instaladas sob um viaduto de São Paulo no início deste mês. Tanto os blocos de concreto daqui quanto os paulistas têm um objetivo: afastar pessoas em situação de rua do centro das cidades, impedindo que eles se instalem abaixo dos viadutos.
Júlio Ritta, idealizador da ONG, afirma que o poder público e os proprietários de lojas aplicam uma arquitetura classista e higienista para com a população de rua.
— Porto Alegre é um município que, na Semana Farroupilha, constrói um acampamento para milhares de pessoas todos os anos, mas não tem uma política séria para pessoas em situação de vulnerabilidade. E esse quadro está pior agora, porque ainda vivemos essa pandemia e temos o agravante do fim do pagamento do auxílio emergencial, o que vai levar mais pessoas para as ruas da cidade — afirma.
Bruno*, 28 anos, trabalhava como segurança. Porém, há sete anos, foi desligado desta função. Sem alternativas para onde ir, fez das ruas sua casa.
Há um mês, encontrou uma companheira e os dois dividem o pouco que têm. Em quase uma década fazendo do concreto seu colchão e travesseiro, ele conta que situações de apuro são frequentes:
— Pouco tempo atrás, tentaram colocar fogo em um colega. E, ontem (quinta-feira), a gente estava dormindo e a Brigada Militar nos mandou sair debaixo do viaduto. E tem também o que a prefeitura faz, por exemplo, com a construção desses blocos embaixo dos viadutos. Isso nos impede de dormir, de trabalhar, porque fazemos da reciclagem nosso ganha-pão e precisamos circular com o carrinho. Além disso, muitos idosos tropeçam nessas pedras também. Elas são ruins para todo mundo, ninguém sai ganhando com a instalação delas. Tomara que, a partir de hoje, o prefeito se mova para terminar de retirar os outros blocos daqui e dos outros viadutos.
Com um buquê de flores nas mãos — que logo seria depositado entre os vãos de pedras de concreto —, Luísa Marques, 27 anos, voluntária do Cozinheiros do Bem, revela que essa também é sua esperança:
— Que esse seja o primeiro passo, porque essa arquitetura hostil que temos agora só mostra o quão invisível essas pessoas são para o poder público. Escancara também que vigora uma política higienista, mas estamos aqui para mostrar que as pessoas em situação de rua devem ser enxergadas de verdade.
Ritta aponta que a própria arquitetura da cidade pode ser otimizada para abrigar essa população.
— Podemos aplicar o conceito de arquitetura inteligente e criar espaços de moradia abaixo dos próprios viadutos. Até porque existem pessoas com histórico de uma vida toda morando embaixo desses locais. E tirá-las dali é retirá-las da própria casa. Precisamos ter um olhar mais humano sobre essa situação. Precisamos tirar do peito o coração de pedra e colocar um coração de carne, mergulhado em compaixão e empatia — diz.
Após o ato, houve a distribuição de um kit de alimentos para os, aproximadamente, 30 moradores de rua que acompanharam a intervenção.
Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social informou que "a prefeitura de Porto Alegre cria projetos e ações que estimulem estes cidadãos a resgatarem sua dignidade por meio do emprego e renda, além da retomada dos vínculos familiares. Não há nenhuma atitude da gestão municipal de forma punitiva ou restritiva".
*Bruno é um nome fictício.
Confira a íntegra da nota da prefeitura
Toda pessoa em situação de rua é uma ilha cercada de omissões por todos os lados. Omissão da família, da comunidade e do poder público. A pessoa em situação de rua precisa ser muito importante para o sistema de proteção, ela precisa ter um atendimento customizado para o caso dela. Pois é uma população com uma imensa diversidade de perfis e de demandas. A Prefeitura de Porto Alegre cria projetos e ações que estimulem estes cidadãos a resgatarem sua dignidade por meio do emprego e renda, além da retomada dos vínculos familiares. Não há nenhuma atitude da gestão municipal de forma punitiva ou restritiva.
Porto Alegre é um case de sucesso com o projeto AÇÃO RUA, que retirou as crianças e adolescentes das sinaleiras da cidade. O Ação Rua agora será remodelado e aplicado no atendimento da população adulta em situação de rua em Porto Alegre. A prefeitura está construindo uma estruturada proposta que vai atender e impactar diretamente, em grande parte da população de rua, com o enfretamento à extrema pobreza.
Acreditamos no trabalho de equipes especializadas, presentes nos territórios e abordando permanentemente essas populações. Esta política continuada representa um processo de conhecimento recíproco, entre os serviços e a população e o estabelecimento de contato de vínculo e, inclusive, de confiabilidade recíproca. A FASC tem essa equipe pronta e com grande qualidade de trabalho. Nesta gestão a Fundação está altamente valorizada e qualificada e vai desenvolver um excelente trabalho.
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – Secretário Léo Voigt