Júlio dorme em uma das áreas mais movimentadas do centro de Porto Alegre: enrolado em uma bandeira do Brasil, sob a proteção do Viaduto da Conceição. Aos 31 anos, ele diz ter vergonha de falar o nome completo. Teme ser reconhecido por quem o admirava. Profissional da construção civil, conta que era encarregado de obras na Região Metropolitana. A coberta azul, verde e amarelo foi deixada sobre ele na noite do último domingo (7).
— Tenho apreço pela pátria, mas estou bem decepcionado. Não está significando muita coisa — diz, ainda deitado no piso irregular.
O ex-morador de Alvorada se instalou em um espaço cercado pela chamada "arquitetura hostil": pedras concretadas ao solo com o objetivo de inviabilizar a colocação de colchões, ou a construção de casebres pelos sem-teto. Ao lado da Avenida Farrapos, há uma sequência de cocurutos enfileirados.
A arquitetura hostil voltou a debate no Brasil na última semana. No dia 2 de fevereiro, as redes sociais foram tomadas por imagens do padre Júlio Lancellotti, com uma marreta em mãos, destruindo blocos colocados embaixo de viadutos da cidade de São Paulo. A repercussão levou a própria prefeitura a retirar os paralelepípedos, e exonerar um funcionário apontado como responsável pela intervenção.
Na capital gaúcha, as construções são mais antigas, conforme o Paço municipal.
— Isso é agressivo e pouco atrativo para a população. Não tem nenhuma utilidade. São criados somente para afastar o morador de rua. O pior, não retira as pessoas da rua – aponta Rafael Pavan dos Passos, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil no Estado (IAB-RS).
Em Porto Alegre, a reportagem de GZH passou em cinco locais e encontrou pedras pontiagudas, blocos enfileirados ou outras intervenções com o mesmo objetivo debaixo de marquises.
No bairro Praia de Belas, o Viaduto Dom Pedro I tem uma das maiores incidências desse tipo de construção. O trajeto do Largo Telmo Thompson Flores (por baixo do viaduto) passa por uma espécie de pirâmide erguida com pedras, sob uma marquise.
Na rótula da Avenida Borges de Medeiros, o canteiro tem o piso inclinado, intervenção que não surtiu o efeito esperado por quem a idealizou: em um dos pilares, colchões, cobertas e lonas cobriam cerca de cinco pessoas. Placas com pedido de ajuda financeira ou por um prato de comida estavam no chão.
— Não é o apropriado ficar na rua. Têm locais para dormir, mas aí com regras – argumenta a trabalhadora de varrição das ruas, Ana Clara, 39 anos.
Embaixo do Viaduto Tiradentes, sobre a Avenida Protásio Alves, bairro Santa Cecília, as pedras prejudicam inclusive a caminhada. No bairro Rio Branco, o Viaduto Engenheiro Ildo Meneghetti tem o mesmo projeto.
Na sede dos Correios (Rua Siqueira Campos, 1100), usuários do Centro Histórico não podem se proteger da chuva ou do sol. O acesso é dificultado por uma sequência de paralelepípedos. Procurado por GZH, os Correios afirmaram que a instalação das pedras foi feita em 2001, "em razão da ocorrência frequente de depredações e incidentes que comprometiam a segurança do local na época". A estatal diz ainda que "trabalha em um projeto para alterar esse espaço, que já foi aprovado pela prefeitura". A proposta prevê a instalação de uma rampa de acessibilidade para a entrada lateral da sede dos Correios.
Saída é arquitetura convidativa
Rafael Pavan dos Passos, presidente do IAB-RS, sugere fachadas mais convidativas à ocupação pela população como uma saída à mudança do cenário. Com locais mais agradáveis, se gera um cuidado espontâneo, afirma o especialista.
O arquiteto e urbanista reflete sobre a questão, e pondera que ela é mais social do que arquitetônica. E reitera que instalações desse tipo levam a comportamentos também agressivos.
— Tem estudos comportamentais que demonstram que em contextos diferentes as pessoas agem diferente. Essa arquitetura provoca uma sensação de que a pessoa precisa se proteger, e convida a certa hostilidade. Se o poder público propõe essa hostilidade, promove a mesma hostilidade — avalia.
O padre gaúcho Antonio Hofmeister trabalha e vive no Vaticano. Convive com inúmeras pessoas que dormem sob as colunas da Praça de São Pedro. Segundo o pároco, a dispersão do público em situação de rua já foi tema no papado.
— O Papa pediu à polícia italiana que não interfira. Que deixe os que preferem dormir ali para que o façam — diz o religioso.
Revisão das estruturas
A construção de passeios com impeditivos para circulação é anterior a 2014, segundo o executivo municipal:
"Os viadutos mais recentes, construídos a partir de 2014, não apresentam tais elementos, pois decorrem de concepções ajustadas aos conceitos de mobilidade integrada, focada principalmente na disponibilização de calçadas, passeios e superfícies planas e sem obstáculos aos pedestres", informa em nota a Secretaria de Obras e Infraestrutura, responsável pelas "obras de arte especiais”, como são chamados viadutos, pontes e passarelas.
A pasta afirma ainda que a prioridade é inspecionar as obras com foco na segurança das estruturas. "Após, a secretaria trabalhará na situação de cada um dos viadutos no tocante a existência de eventuais não atendimentos às normas de calçadas públicas agregadas aos viadutos".
Ações de ONGs e da Fasc atendem população de rua
Devido à crise econômica gerada pela pandemia de coronavírus, há a percepção de aumento no número de pessoas em situação de rua, segundo a Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC). A estimativa é que existam 2,8 mil adultos sem residência fixa, sobrevivendo como pedintes ou recicladores e dormindo em locais provisórios.
Enquanto um mapa atualizado sobre a população vulnerável não é finalizado, as equipes de abordagem da Fasc ouvem relatos de demissões que levaram os trabalhadores à pobreza extrema, sem possibilidade de manter um lar.
Diretora técnica da fundação, Júlia Obst diz que até 2019 os agentes encontravam poucas crianças nos semáforos. Com o fechamento de escolas e queda na renda das famílias, esse público voltou às esquinas, segundo a diretora.
Com 12 equipes na chamada Ação Rua, a Fasc se aproxima das pessoas e oferece assistência em abrigos e albergues da própria administração do executivo, ou a partir de convênios. Nos casos em que a pessoa está sem documentação, é oferecida a reimpressão dos papéis.
— É prioridade trabalhar com a população de rua. População que precisa de acompanhamento, e não de mais exclusão — diz Júlia.
Os serviços também podem ser solicitados por quem encontra alguém em situação de vulnerabilidade, ou buscados diretamente pelos telefones 51 3289-4994 e no 156.
Outros contatos:
- Abordagem noturna: população adulta, das 19h às 7h - 156 / 3289 4994
- Albergue Acolher 2: Rua 7 de Abril, 315, bairro Floresta - 3737 2118
- Albergue Dias da Cruz: das 19h às 7h, na Avenida Azenha, 366 - 3223 1938
ONG Morador de Rua Existe
Pelo quarto ano, um grupo de amigos leva à população de rua um sábado mais digno. O "Morador de Rua Existe" distribui, com ajuda de uma centena de voluntários, marmitas com galeto, salsichão, salada de maionese, arroz e farofa. Em torno de 400 pessoas são atendidas em viadutos da Capital.
A psicóloga social e organizacional Vanessa Oliveira, 26 anos, é uma das organizadoras. Durante a pandemia, diz ter conhecido projetos semelhantes, nascidos ou ampliados para suprir as ações públicas. Convive há quatro anos com a arquitetura hostil nos acolhimentos.
— Deparar com uma arquitetura que é construída para afastar pessoas, para que não durmam em viadutos, teoricamente protegidos da chuva, por exemplo, é frustrante. É muito triste.
Fraternidade O Caminho
Uma missão religiosa também pode ser vista nas ruas do município. Com sete irmãs e 14 postulantes — jovens que estão se preparando para serem irmãs -, a Fraternidade O Caminho distribui alimentos e leva palavras de apoio. O serviço foi suspenso na pandemia, mas deve voltar às atividades na próxima quinta-feira (11).
Irmã Maria Cândida Hóstia de Amor (sobrenome escolhido pela irmã ao proferir seus votos religiosos) está à frente da fraternidade desde 2018.
— Infelizmente, na maioria das vezes o poder público não facilita a vida dessa população das ruas. Esses anteparos colocados são sobretudo nas vias mais vistas da cidade. Para aquela via não ser “manchada”, como entende o poder público, em um ponto turístico ou de muita movimentação.
Cozinheiros do bem
Com mais de 300 voluntários cadastrados, o Cozinheiros do Bem entrega mais de 1 mil pratos por semana, o equivalente a 15 toneladas, segundo o ativista Júlio Ritta. À frente de ações com a população vulnerável desde 2015, ele avalia essa arquitetura como elitista.
— O feio salta aos olhos, e claro que nenhum político quer sua cidade mal falada. É mais fácil construir "muros" do que albergues. Haja pedra para cobrir a "cama" dos milhares de seres humanos que dormem pelas calçadas — diz o chef do Cozinheiros do Bem.
No mês de março, Ritta diz ter um encontro marcado com o padre Júlio Lancelotti. Antes disso, promete, vai aos viadutos de Porto Alegre retirar os blocos, em uma ação inspirada pelo religioso paulista.