Virginia Silva é uma mulher negra, gari de profissão, que criou cinco filhos na Vila Cruzeiro. Na noite de 15 de novembro, aos 54 anos, ela chorou de orgulho ao se tornar mãe de uma vereadora eleita.
Terceira da prole, Bruna Rodrigues, 33 anos, recebeu 5.366 votos e conquistou uma vaga na Câmara de Porto Alegre pelo PCdoB. Dia desses, ela publicou no Facebook uma selfie ao lado da mãe, que vestia o uniforme laranja do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). O post servia para desmentir uma fofoca — uma vizinha viu dona Virginia limpando o pátio da casa que divide com a filha no bairro Morro Santana e acusou Bruna de usar a máquina pública a seu favor. Mas também foi um pretexto para declarar sua gratidão: “Essa mulher batalhou muito para ter uma filha vereadora”.
— Eu tenho um exemplo de mulher forte: minha mãe é uma guerreira, ensinou para a gente que só lutando dá para mudar a vida — acrescentou ela depois, em entrevista a GZH no pátio de casa.
A história de Virginia parece com a de muitas mulheres negras no Brasil. Ela não conheceu o pai, e a mãe, analfabeta, tentava sustentar sete filhos como faxineira.
Estudou até o sexto ano apenas e foi morar com um homem aos 13 anos. Com 15, teve o primeiro filho. Uma imagem que não sai da cabeça é a de Bruna, muito pequena, chorando porque não tinha o que comer.
Entrar para o DMLU, no dia 3 de dezembro de 1991, foi um marco:
— Cada vez que vinha um salário eu ficava radiante: a gente não ia mais passar fome — relembra Virginia.
Gastou o primeiro pagamento inteiro com comida, assim que recebeu. Depois, intercalava os gastos com alimentação, material escolar e as roupas para os filhos com a compra de materiais de construção, com o objetivo de fazer a sua casa.
— Eu cheguei no DMLU com a vida destruída. E meu primeiro chefe me disse que, ali, eu podia chegar onde quiser. Falou: “tu vai começar a receber o teu salário e vai vendo o quanto tu pode mudar a história da tua vida”. Eu botei aquilo em mim.
O emprego de carteira assinada também foi importante para que conseguisse deixar o relacionamento violento — Virginia conta que apanhava muito do companheiro. Conseguiu que ele saísse de casa quando estava grávida do caçula, Kauan, que hoje tem 16 anos.
— O nosso futuro hoje é bem diferente de 40 anos atrás. A gente achava normal o homem bater, achava que ia passar... Quando estava grávida da Bruna e soube que era uma menina, achava que ele ia melhorar. E tu passa a ser escrava — conta Virginia, que também via a mãe apanhar.
— A violência é um ciclo difícil de ser quebrado, ele vai acompanhando gerações — acrescenta Bruna. — O trabalho formal ajudou a reverter uma situação de violência doméstica: quando a mãe vira gari, tem uma renda fixa, não depende mais dele.
Hoje, Virginia não trabalha mais varrendo rua, mas na limpeza do espaço onde os garis se reúnem, na Zona Norte. Os dois filhos homens de Virgínia, hoje vigilantes, também já trabalharam como garis. A própria Bruna começou a vida profissional na Cootravipa, limpando o Postão da Cruzeiro. Em 2011, ela passou no vestibular da UFRGS para Administração Pública Social. Foi a primeira da família a entrar em uma universidade. Ainda não se formou, mas pretende colar grau ano que vem.
— A sociedade é estruturalmente racista. Aquele lugar, lugar da limpeza, da faxina, está posto pra nós. E o meu grande sonho sempre foi poder dizer para a minha filha que ela pode ser quem ela quiser, diferente de mim e da minha mãe que viemos com parte do caminho traçado — ressalta Bruna, mãe da Kamilly, de 15 anos.
Virginia sempre desconfiou que a filha levava jeito para política. Destaca o perfil bravo (diz que puxou dela) e comunicativo (esse, não sabe de onde vem). A matriarca, entretanto, deixou a timidez de lado na campanha: passou a levar vários santinhos consigo para distribuir a caminho do trabalho, explicando para os desconhecidos que Bruna Rodrigues é sua filha e que queria se tornar vereadora.
Virginia precisa controlar a emoção para relembrar a noite de 15 de novembro, após a apuração dos votos.
— A Bruna conquistou o espaço dela. Tudo o que eu não pude ser, minha filha hoje é.
A mãe tem certeza de que ela não vai parar por aí. O sonho da dona Virginia é que Bruna se torne deputada. Na verdade, quer mais: almeja vê-la presidente da República.
— Eu quero estar velhinha, viva, para ver.
Se não puder ser ela, dona Virginia já se satisfaz com outro ou outra presidente de cor negra no Palácio da Alvorada.
— Para dizer que somos capazes e temos direito de chegar onde quiser. Com luta, com sabedoria, sem passar por cima de ninguém.
P.S: Há alguns anos, Virginia começou a namorar com seu primeiro chefe no DMLU, aquele disse para ela que conseguiria mudar sua história. Bruna chama ele de pai.