Faz dez anos que o rebanho mais colorido do mundo se espalhou pelas ruas de Porto Alegre. Entre outubro e novembro de 2010, a cidade recebeu a CowParade, evento internacional de arte a céu aberto que tem como obras vacas de fibra de vidro em tamanho real. No fim, 79 mimosas decoradas por artistas locais foram vendidas em um leilão beneficente, coletando R$ 1,365 milhão, recorde do evento no Brasil até então.
Mas onde foram parar as valiosas e populares vaquinhas?
GZH seguiu as pegadas de 18. Elas estão em jardins, empresas e até em museu, lembrando um momento de vacas gordas da vida cultural da cidade.
A favorita de Scheila
Na noite de 1º de dezembro de 2010, Scheila Vontobel foi para o leilão no Teatro Bourbon Country decidida a não sair sem a Roseta, obra de Clarissa Motta Nunes. A empresária já acompanhava ela desde antes de ir para a rua — seu marido, Ricardo Vontobel, era o patrono da exposição representando a Mu-Mu, marca que patrocinou o evento.
— Quando a artista estava pintando, eu já tinha colocado o olho. Daí ela foi para a frente do Theatro São Pedro e virou minha favorita — lembra Scheila.
Enquanto o esposo ajudava na condução do leilão, ela levantava as plaquinhas para garantir um mini rebanho ao lar do casal no bairro Três Figueiras. Levou a Cowtooada (de Eduardo Miotto), a Então Toma Essa! (Pirecco), e a Roseta, é claro.
— Eu já fui avisando todo mundo: nem vem, que é minha. Algumas fizeram lances de sacanagem, para levantar o preço. E acabou sendo muito legal, súper comemorado quando consegui.
As duas primeiras ficam no quintal, e a queridinha recepciona os convidados de Scheila no hall de entrada da casa, com suas rosas vermelhas espalhadas pelo corpo. Os filhos das amigas amam montar nela para tirar foto.
Mesmo com essa utilidade de entretenimento, Scheila destaca que se trata de uma obra de arte.
— É como ter um quadro, uma tela. Isso é cultura, e parte da cidade. Parte de um momento bacana que Porto Alegre teve.
Artigo de museu
Vestindo chuteiras e ostentando o símbolo do clube grandão no lombo, a Cowlorada, do artista Rodrigo Oliveira, acabou virando artigo de museu. Foi adquirida por um advogado e sócio do Inter, que preferia não ser identificado. Desde o primeiro minuto, ele disse que a doaria ao Museu do Inter, no Estádio Beira Rio.
O espaço está fechado hoje em razão da pandemia. Mesmo sem aglomerações, a vaca está protegida do coronavírus: ganhou uma máscara gigante para cobrir o focinho e estimular o uso da proteção.
O destino trágico da Cowstelação
Era uma vaca iluminada. Literalmente: o lombo da Cowstelação (de Letícia Poyastro e Diego Moura) tinha luzinhas que acendiam, fazendo dela um dos xodós da exposição.
Colocada em frente à Fundação Iberê Camargo durante a CowParade, ela foi comprada para o jardim do Carlos Gomes Center, no bairro Três Figueiras. Ficou lá por pouco mais de cinco anos, mas teve um fim trágico na mesma tempestade que naufragou o barco Cisne Branco e devastou o Parque Marinha do Brasil.
— Fazia um sucesso, a danada. O que fizeram de selfie com essa vaquinha — recorda o administrador do condomínio, Miguel Francisco Weigel. — Mas ela quebrou muito naquele temporal de janeiro, recolhemos os pedaços. Todos ficaram sentidos, perguntando por que ela sumiu.
No campo ou na praia
As duas vacas adquiridas pelo casal de leiloeiros Reinaldo e Liliamar Pestana foram pastar em outros pagos. Antes escalada para o Estádio Olímpico, a Tricowlor, de Chico Baldini, foi com bola e tudo para o Litoral Norte, na frente da casa de praia da família, em Atlântida.
— Ela ainda é um ponto turístico dentro do condomínio, as crianças querem tirar leite da vaquinha, bater foto — relata Liliamar.
A obra foi um presente de Reinaldo, já falecido, ao filho gremista. O leiloeiro não se importou em pagar R$ 30,5 mil para ajudar as instituições beneficiadas no leilão, como o Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Funcriança), e presentear o guri. Mesmo sendo colorado.
— Ele fazia tudo pelos filhos — acrescenta Liliamar.
A Vegecow (Cristiano Martins Costa & Criativos Associados), a Liliamar comprou para presentear os pais, que têm fazenda em Campinas do Sul. Ela faz referência à delimitação de cortes de carne, como nos pôsteres expostos em muitos açougues. Só que em vez de palavras como alcatra, picanha, costela, as partes levam nomes de vegetais: beterraba, alface, tomate.
Os pais de Liliamar até já tiveram criação, mas hoje a Vegecow é o único bovino da fazenda.
Curtindo Porto Alegre do alto
A Andeja e a Vaca em Braile têm hoje uma vista privilegiada da Capital, do topo do bairro Rio Branco. Foram arrematadas pelo empresário Rodrigo Tomasel e levadas para o jardim de uma amiga, uma vez que ele mora em apartamento. Elas chegaram a ficar na frente do Mercado Público, junto a um café que ele tinha. Mas como tinha gente que subia para tirar foto, ele preferiu retirá-las para resguardar.
A Vaca em Braile (de Fernando Giongo) é toda branca, com inscrições no sistema de escrita tátil utilizado por pessoas cegas. A Andeja (criação de Antônio Albino Maciel) o povo viu, durante a CowParade, na Estação Aeroporto do Trensurb. Ela é vermelha e tem estampadas pelo corpo figuras de pessoas caminhando.
O valor que investiu, Rodrigo prefere não contar. Ressalta que era por uma boa causa e encerra o assunto:
— Obra de arte não tem preço.
A boa filha à casa torna
A Vaca de Ísis voltou para casa. A obra também foi adquirida pelo empresário Rodrigo Tomasel e até recepcionou clientes do café que ele tinha no Mercado Público, mas, após o incêndio de 2013, foi levada para o ateliê do artista responsável, na Avenida Padre Cacique.
— Olha que sorte que tive — diz o mosaicista e arquiteto Leonardo Posenato, 39 anos.
Ele coloca a vaca na frente do ponto. Diz que nunca perdeu o estrelato, especialmente com crianças. E destaca:
— Todo mundo se lembra da CowParade, foi algo marcante para a cidade. Eu via em São Paulo, no Rio, achava o máximo, coisa de metrópole. Foi uma surpresa quando veio para cá.
Na Vaca de Ísis, Leonardo fez uma versão egípcia do animal, com os contornos dos olhos bem delineados e escrita em hieróglifos egípcios — diz "toda a sabedoria, proteção e vida para você".
Ele lembra como se fosse ontem a trabalheira que deu para criá-la: levou três meses revestindo ela com mosaico de pedras. Com uns 450 quilos, precisava de uma equipe para carregar.
As garotas-propaganda
Cinco vacas da CowParade viraram garotas-propaganda de uma empresa de rações gaúcha. A Mão de Vaca (criação de Coletivo Otto), a Space Invaders (Joelson Bugila) e a Vaca Boi da Cara Preta (Suzane Wonghon) estão na sede da Alisul Alimentos, da marca Supra, em São Leopoldo, enquanto a Miss (Flávia Giroflai) foi para a fábrica de Carazinho e a Cowversa Comigo? (Vital Lordelo), para Esteio.
Depois de arrematá-las no leilão, o presidente e diretor da empresa de rações, Henrique Schmitz, brincou com os repórteres:
— Quem sabe agora passamos a produzir leite também.
Henrique faleceu ano passado, aos 75 anos. Mas as mimosas seguiram sendo mimadas. Uma um pouco mais do que as outras: enquanto as colegas se integram à paisagem nos jardins da empresa, a Miss fica em área coberta para poupar as rosas de tecido que a revestem.
A vaca leitora
No leilão beneficente, a Dominicow foi o arremate mais valorizado da noite. A vaquinha sentada de pernas cruzadas lendo a Zero Hora de domingo, criada por Rodrigo Oliveira, foi comprada pelo Grupo RBS por R$ 90 mil. Foi uma disputa acirrada, e saiu quase pelo dobro do preço da vaca mais cara das edições do Brasil até então.
Ela virou uma embaixadora de ZH, que levou sua leitora dominical para a Expointer, para a Casa&Cia, para o Acampamento Farroupilha. E também recebeu por anos os visitantes na recepção do jornal na Avenida Ipiranga – essa entrada foi fechada ao público no ano passado, e hoje a vaca faz companhia aos funcionários em um espaço aproveitado nos intervalos do expediente.
Musa das crianças, dos carteiros e dos garis
Com "pelagem" poá, estampas coloridas e piercings no mamilo, a Vaca Foi pro Beco levou todo o seu estilo da Praça Julio de Castilhos para o bairro Sétimo Céu, na zona sul da Capital. Criação de Andrey Damo, ela decorou o jardim da procuradora de Justiça Angela Rotunno nos últimos 10 anos. E segue fazendo sucesso com os vizinhos, a criançada e até os trabalhadores durante a labuta.
— Esses dias, um caminhão de lixo parou para os lixeiros tirarem foto — conta Angela.
A vaca foi um presente para o filho de 12 anos, na época, que tinha se apaixonado pela CowParade e mandado bem na escola naquele ano.
— A gente foi visitar todas as vacas, era o programa de sábado e domingo. Tenho saudade desse momento de efervescência, Porto Alegre vivia um movimento cultural fantástico — diz a promotora.
E além de embelezar o jardim, a vaca acaba fazendo um serviço para a casa, servindo como ponto de referência. Para marcar o horário com o fotógrafo que fez esse registro, Angela explicou:
— É a casa com a vaquinha na frente, vai ser fácil de achar.
Sumiu de novo?
Por muito pouco, a Cowó(p)tica não saiu do caderno de cultura para as páginas policiais. Colocada na esquina das ruas Coronel Genuíno e Fenando Machado, no Centro Histórico, certo dia ela amanheceu desaparecida.
O mistério chamou a atenção da imprensa, e o artista L. Dalla Costa estava oferecendo até recompensa para quem a localizasse. Mas durante uma entrevista no local, a porta de um prédio se abriu e dois homens apareceram carregando a vaca.
Nunca ficou bem claro o que aconteceu. Um dos rapazes que levou a vaca disse que não sabia da exposição e acabou levando por achar que alguém tinha "deixado ali por engano".
Dez anos depois, ZH não localizou a Cowó(p)tica. Nem o artista sabe o paradeiro. Mas ninguém se surpreendeu: histórico de sumida ela tem.
Sobre a CowParade
- A CowParade é considerada o maior evento de arte a céu aberto do mundo, tendo como objetivo democratizar a arte através da inclusão cultural.
- Surgiu com a ideia do artista suíço Pascal Knapp, em 1998, quando apresentou três modelos de vaca (deitada, pastando e em pé) durante um evento de arte em Zurique. Para o escultor, as vaquinhas seriam a forma mais criativa de reproduzir uma tela tridimensional para artistas locais se expressarem.
- O advogado Jerry Elbaum, que passava férias na Suíça, comprou os direitos das esculturas e da exposição em vias públicas e acabou fundando, nos Estados Unidos, a CowParade Holding Inc.
- A parada foi realizada pela primeira vez em 1999, em Chicago (EUA). A primeira edição no Brasil foi em 2005, em São Paulo, mas Curitiba, Belo Horizonte e Rio de Janeiro também haviam recebido o evento antes da capital gaúcha.
- Em Porto Alegre, entre outubro e novembro de 2010, teve vacas colocadas em lugares de grande circulação como shoppings, rodoviária ou na rua mesmo
- Salvador, na Bahia, foi a última capital brasileira a receber o evento, no ano passado.