Um verbete ganhou novo significado nas ruas de Porto Alegre, nos últimos meses: plaquear. De acordo com o dicionário Aurélio, plaqueamento é “a colocação de placas orientadoras do trânsito”. No dicionário informal, escrito por quem caminha entre os veículos, plaquear define um modo de sobrevivência.
— Eu “plaqueio” porque perdi emprego com carteira assinada e tive que vir para a sinaleira. Trouxe carteira (de trabalho), trouxe currículo, vim correr atrás de emprego. Já fui gerente, sabe, mas aqui, ao entrar no serviço, já viram a cara.
O relato acima é de Maurício da Silva Schoeninger, 23 anos. Poderia ser o do Jeferson, da Luana, do Alissom e do Wagner. E de centenas de outros que, mesmo não vivendo em calçadas ou sob marquises, passaram a dividir o espaço das ruas com 2,6 mil pessoas, estimativa da população em situação de rua do último levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura. Realizado em janeiro, esse estudo não tem ainda os efeitos da pandemia. Para as equipes de abordagem social da Fasc, porém, a nova realidade é visível.
— Não víamos o fenômeno nas sinaleiras, com esse volume, há muito tempo em Porto Alegre. É notório. São pessoas que não entram na nossa estatística porque não vivem na rua, mas fazem da rua a sua fonte de renda — afirma Patrícia Mônaco, coordenadora das 12 equipes de abordagem responsáveis por oferecer os serviços municipais às pessoas em vulnerabilidade.
As histórias por trás dos cartazes acrescentam incontáveis tons aos sinais vermelhos. E revelam que a pandemia de coronavírus ceifou o sustento de muitos trabalhadores. A taxa de desemprego no Rio Grande do Sul subiu de 8,3% para 9,4%, na comparação do primeiro trimestre de 2020 com o segundo, quando a covid-19 impôs restrições em quase todos os setores da economia. O Estado acumula 535 mil pessoas sem ocupação — 31 mil desempregados a mais no período comparado.
Há, ainda, um indicador que quase dobra os números negativos: 520 mil gaúchos estão "fora da força de trabalho", grupo que deixou de procurar uma vaga.
Além dos porto-alegrenses, a Capital tem nas esquinas moradores de outras regiões, caso de Maurício. Nascido e criado em Lajeado, ele deixou a cidade natal após ser demitido de uma distribuidora. Os dois anos de experiência não foram suficientes para receber uma nova oportunidade no Vale do Taquari, e a saída foi migrar. Além dele, que recebia R$ 2,5 mil por mês, outros seis foram demitidos em maio, na mesma empresa.
Na mala, além dos documentos apresentados sem sucesso aos setores de Recursos Humanos, vieram algumas roupas. O mais valioso, como define, ficou em Lajeado: a esposa e os três filhos, para quem envia o pouco que arrecada.
— Família é tudo. Se não tem uma família, para que estar vivo? Por isso eu sigo batalhando — afirma.
Um quartinho alugado nas pequenas pensões da área central custa R$ 15 por dia, e evita que ele durma ao relento. Almoço e café vêm da cortesia de voluntários. O cartaz, feito a partir de um recorte de lona de publicidade, informa a necessidade de pagar aluguel e tenta convencer os motoristas a baixarem os vidros: “Se Deus tocar no seu coração, me ajuda”, apela a faixa, por vezes ignorada.
No sinal da Avenida Osvaldo Aranha, ele logo desaparece da visão dos motoristas. O cruzamento permanece, por alguns minutos, sem placas de súplica. Correndo de volta do Túnel da Conceição, explica o sumiço repentino.
— Fui mandar um Whats para minha esposa, saber se eles estão bem. Eu estou sem telefone, vendi num dia que não tinha conseguido nada na sinaleira — resume.
Uma família inteira de pedintes
Os motoristas que passam entre as avenidas Nilo Peçanha e João Wallig, na Zona Norte, são testemunhas da dificuldade de uma família: pai, mãe e dois filhos, de um e três anos, circulam em meio aos carros. No cartaz, um pedido de socorro feito por chefes de família para chefes da família.
Igor da Silva, 24 anos, passa ao lado das fileiras de veículos, enquanto Luana Rodrigues, 19, circula com o cartaz. O casal deixa diariamente a Vila Renascença, no bairro Cascata, Zona Sul, de ônibus até o ponto em busca de sustento. Ainda pela manhã, chegam ao Três Figueiras. Brinquedos e alimentos são deixados próximo a uma árvore, e contrastam com a grandiosa estrutura de um shopping center. O menino de três anos corre sozinho pela calçada. O pai, no lado oposto. Já a mãe carrega o filho mais novo ao colo, no trânsito.
— Eu venho para cá porque é mais solidário. Muita gente tem dinheiro, e ajuda. Ninguém sabe o que estamos passando. A necessidade fala mais alto. E tu ainda escuta desaforo, dizem que a gente está explorando a criança — lamenta Luana.
Antes da pandemia, Igor trabalhava com bicos, realiza limpeza de pátio, serviços de poda e corte de vegetação. Com o alastramento do coronavírus, a oferta diminuiu e o semáforo tornou-se a única alternativa.
— Agora não temos onde deixar as crianças, e a necessidade bate na nossa mesa — afirma.
Em meio à conversa com a reportagem, o casal é surpreendido por uma grata colaboração: um motorista doa R$ 50. Logo depois, uma mulher se aproxima da mãe e oferece uma sacola: são dois ursos de pelúcia para os meninos. A doadora é a pedagoga empresarial Dulce Ramos, 51 anos, moradora do bairro Boa Vista.
— Sempre passo aqui e vejo eles. Eles não têm nada. Eu tenho duas filhas que já cresceram. Aí fui lá catar algumas coisas e trouxe os ursos — explica, enquanto observa a alegria das crianças que agora brincam com os presentes.
Vendedor trocou balas por placa
A percepção de que há mais pessoas nos sinais é corroborada por quem atravessa Porto Alegre de carro diariamente. O motorista de transporte por aplicativos Edison Luis Beauvalet, 56 anos, observa o fenômeno nos cruzamentos da área central.
— Tem muita gente pedindo emprego por cartaz, nas esquinas. Ou pedindo ajuda, dinheiro, e tem até mais gente vendendo bala — afirma.
Vendedor até março, o medo do contato pelo vidro do automóvel espantou os clientes de Alissom Mateus Barbosa da Silva, e exigiu mudanças. Aos 25 anos, ele vendia doces em Canoas, onde vive ao lado da mulher e dos dois filhos. Desde o início da pandemia, viu a renda minguar e trocou as balas por uma placa. Percorre um ponto estratégico, logo após a entrada da Capital, na Rua Sarmento Leite. Sem sucesso.
— Eu não plaqueava, até porque não gosto de pedir. Mas do jeito que o coronavírus espantou as pessoas, eu desanimei. Só que está ruim de qualquer jeito — justifica.
O canoense utiliza frente e verso do cartaz. Como se montasse um quadro de colagens, incluiu ainda uma foto com o filho mais novo, de um ano e nove meses. Frases com distintos estilos de escrita entregam que o trabalho foi feito a várias mãos. “Fé”, “obrigado” e “Deus” são a base de um lado. No outro, ele remete à contaminação sofrida: “o corona não me pegou, mas a despesa da família me pegou”.
No currículo, informa ter atuado como auxiliar de produção, em supermercado e na construção civil — esse último, o trabalho favorito. Na rua, acumula decepções com o tratamento recebido.
— Bah, ouço um monte de coisa. Uma discriminação sem explicação, xingamentos. Eu estou aqui para sustentar a casa, levar o que comer — diz.
Os gastos mensais giram em torno de R$ 800, entre aluguel, água e luz. A esposa, desempregada, cuida dos meninos em casa. Sem direito a escolha, o jovem formula discurso uníssono ao dos companheiros:
— Pego qualquer coisa que dê um dinheiro no fim do mês.
"Fome e Ração”
Ele perdeu o emprego, teve que deixar a casa, e até se mudar de cidade. Mesmo assim, Wagner Oliveira Cardoso, 31 anos, não deixou seus fiéis escudeiros de lado, os cachorros Negão e Laica. No cartaz, o resumo do pedido de ajuda: "Fome e Ração" — o homem afirma querer, mais que dinheiro, alimentos para si e para os animais.
Padeiro e com residência fixa até o início da pandemia, Wagner vive hoje junto aos taludes do Arroio Dilúvio. Ex-morador do bairro Martinica, em Viamão, perdeu o emprego e não teve como seguir pagando os R$ 450 do aluguel. Sem benefícios do governo, ou ajuda de amigos e parentes, caminhou desde a Região Metropolitana até Porto Alegre. Ao procurar um albergue, deparou-se com um impeditivo, para ele inaceitável: a proibição de viver com os animais no espaço de acolhimento.
— Já que os albergues não aceitam cachorro, fico na rua. Mas roubar eu não roubo, não dá para se entregar para as coisas erradas — diz.
A atual situação é enfrentada desde maio, quando a padaria na qual trabalhava fechou as portas, e não reabriu.
— Eu comecei a ver a plaquinha dos outros. Só que as deles tem muita coisa escrita. Pensei: se eu fosse motorista, não teria muito tempo para ler. Fome é a situação que eu estou, e ração é para os cães — explica, enquanto segura as coleiras de Laica e Negão.
Quando o sinal fecha ao trânsito, a esperança de conseguir ajuda se renova. E mesmo muito distante da realidade passada, demonstra não esmorecer.
— Meu sonho é, em breve, conseguir um serviço. Agora, meu estômago está roncando. Mas não vou baixar a cabeça. Tem que ser forte, ser firme e acreditar, pra voltar a ter minha casa — finaliza, confiante.
“Vale mais que dinheiro”
Enquanto uma mão segura o pedaço de papelão, a outra sinaliza o pedido por comida. É desse jeito que Jeferson Pereira da Silva, 32 anos, anuncia a condição de pessoa em situação de rua — ele vive em uma barraca, montada no Largo Telmo Thompson Flores, sob o Viaduto Dom Pedro I, bairro Praia de Belas.
— Estava trabalhando e “limpo” antes da pandemia. Veio tudo, perdi trabalho e tive uma recaída — reconhece.
Logo que ficou desempregado, o homem que agora tem na placa sua única renda tentou sustento com materiais reciclados. A concorrência e a redução no movimento da região, ocasionada pela suspensão de inúmeras atividades, o fizeram desistir.
O retângulo usado como apelo por auxílio foi desenhado por um dos “vizinhos” que compartilham o espaço debaixo da ponte. Além de Jeferson, outras três pessoas ergueram morada no local, na Zona Sul. “Vc me ajuda a comprar alimento” é acompanhado de um “obrigado”, mesmo que o pedido escrito no cartaz não seja atendido.
— Aprendi a ter paciência com quem não me dá atenção. Não vale a pena se estressar por esses, que me chamam de chinelo, de vagabundo, de ladrão. Esse tipo de pessoa não tem felicidade, só pode — define.
O calejado pedinte evita generalizar os condutores que circulam pela região, apreciada tanto residencial quanto comercialmente. E valoriza gestos que não custam qualquer centavo.
— Um bom dia ou uma boa tarde valem mais que dinheiro — e agradece à reportagem.
Serviço
A Fasc conta com cerca de 600 servidores atuando junto às 12 equipes de rua. Além de conversar com as pessoas em situação de vulnerabilidade, elas oferecem abrigo gratuito, inclusive para os casos relatados na reportagem. Foram distribuídos, ainda, 320 auxílios moradia durante a pandemia, segundo a prefeitura.
- 495 vagas em abrigos
- 100 vagas em albergues
- 280 vagas para higienização e alimentação nos Centro POP 1 e 2
- 260 locais para banho e retirada de marmitas, em sete regiões do município
- 700 refeições distribuídas, diariamente, pelo programa Prato Alegre: 100 na Cruzeiro, 100 na Restinga, 100 na Lomba do Pinheiro e 400 no Centro