A história do Mercado Central de Belo Horizonte é um tanto curiosa. Em 1959, o mercado público local foi consumido por um incêndio. A prefeitura, então, permitiu que os comerciantes trabalhassem de forma improvisada e acordou que o local seria deles se topassem reconstruí-lo em cinco anos.
Em 1964, no limite do prazo e sob a ameaça de venda do terreno pela prefeitura, os mineiros concretizaram a obra. Assim, trocaram o “público” pelo “central” no nome e se tornou o primeiro mercado municipal privatizado da América Latina. Hoje, os 526 mercadeiros mineiros são donos patrimoniais do espaço, alguns há três gerações.
Livre da dependência do poder público para investimentos, o mercado de Belo Horizonte se tornou um dos mais pulsantes do Brasil. Nesta semana, o superintendente Luiz Carlos Braga esteve em Porto Alegre a convite da Associação do Comércio do Mercado Público de Porto Alegre (Ascomepc) para eventos com os permissionários locais e na Câmara de Vereadores.
O que é jornalismo de soluções, presente nesta reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Em conversa com GZH, Braga opinou sobre as potencialidades do mercado da Capital e o futuro do espaço, que passa por decisões judiciais à cerca da legalidade de um edital de concessão à iniciativa privada pelos próximos 25 anos. O bate-papo se deu minutos depois de Braga se lamentar diante do segundo andar do Mercado Público, fechado desde 2013.
– Poxa, que espaço ótimo para eventos – suspirou.
Confira trechos da entrevista, divididos por tema.
Mercado público ou privado
“Quem faz a história de um mercado são as pessoas. Alguns prédios são tombados, são arquiteturas históricas, mas isso não é o mais importante. Em Belo Horizonte, ele é um galpão reformado. Mas tem alma. Prefeitura não tem que se preocupar com mercado, eu concordo. Precisa se preocupar com saúde, transporte, educação... Mas ela pode prever em edital a gestão por associações sem fins lucrativos, com a obrigação legal da arrecadação ser revertida no próprio mercado municipal. Assim ele se mantém conservado e seguro. Se essa outorga não for proibitiva, por que não? Quem entende do mercado são os mercadeiros.”
Riscos da concessão
“Tenho um grande receio quando você coloca um edital e um grande grupo financeiro ganha. Um fundo de investimentos imobiliários ou um fundo de pensão. Há um risco muito grande de o prédio ficar, até melhorar, mas a história se perder. No Mercadão da Cantareira, de São Paulo, o edital é internacional e prevê R$ 114 milhões de outorga. Um grande investidor não entra com esse volume de recurso em um contrato por tempo determinado se não é para tirar aquele dinheiro. O que acontecerá com quem não tiver condições de pagar o aluguel? Em quatro anos, vamos lá ver quem se mantém lá.”
Edital de Porto Alegre
“Um ponto positivo do edital é não prever participação na receita das bancas, como em São Paulo, o que aproximaria o mercado de um shopping. Mas considero falta de bom senso fazer um edital em um momento de pandemia, em que há falta de receita e abalo emocional. Um momento em que não se sabe quem vai pegar ou não vai pegar doença. Se vai ou não vender. Aí você fica sabendo que há um edital em curso e que um grande grupo pode comprar. Esse tempo de quatro anos para os permissionários atuais também me preocupa. Acho curto se comparado às décadas em que elas trabalham aqui.”
Gestão x tradição
Não posso chegar na banca do tiozinho que ainda trabalha com caderneta e dizer: amanhã você tem que fazer delivery, montar um e-commerce, rever seu market place... Pelo contrário. Parte do meu negócio é respeitar e conservar essa forma como ele trabalha.
LUIZ CARLOS BRAGA
superintendente do Mercado Central de Belo Horizonte
“Se eu fosse do município, certamente eu não teria a estrutura que tenho. São 170 colaboradores, sistema de captação de chuva, 306 câmeras de monitoramento. Eu tenho internet, intranet, Instagram... Na administração, tenho que ser moderno e profissional, mas lá embaixo tenho de ser mercado. Há um conflito de geração constante entre os filhos de comerciantes, chegando com todo gás, e os pais e avós. Só que eu não posso chegar na banca do tiozinho que ainda trabalha com caderneta e dizer: amanhã você tem que fazer delivery, montar um e-commerce, rever seu market place... Pelo contrário. Parte do meu negócio é respeitar e conservar essa forma como ele trabalha.”
Fontes de receita
“Meu segredo é: todo dinheiro que entrar, reinvestir no espaço. Lá em Maceió (AL), o mercado tem 320 barracas e está bem deteriorado. Peguei uma senhora pelo braço e perguntei: a senhora pagaria R$ 2 para usar um banheiro digno aqui? Me respondeu: ‘moço, é o que eu mais quero’. Reverte essa renda paro mercado, ora. Caixas eletrônicos: cobro R$ 2 mil de cada um para estarem lá. Estacionamento: tira do flanelinhas do entorno, cobra e reverte ao mercado. Ativações de publicidade: não pode na fachada? Tudo bem, mas faz um contrato que permita um espaço de ativações, aulas de gastronomia, eventos. É papel da prefeitura se preocupar isso? Não, não é. Mas ela pode ser parceira e permitir que se faça.”
Oportunidades de crescimento
“O Mercado Central funcionava razoavelmente bem até ali por 2010, quando nós enxergamos uma oportunidade com a Copa das Confederações e do Mundo de colocar o mercado no circuito turístico da cidade pela gastronomia. Incentivar todos que passam pro Belo Horizonte a não sair sem passar pelo mercado para levar um queijo curado, uma goiabada, um doce de leite. Ali, demos um salto de visibilidade junto à própria população local. Virou um polo para cursos de gastronomia, visitas de escola e tudo mais.”
Potencial de Porto Alegre
“O que mais me impressionou foi o movimento. As 100 mil pessoas que passam por dia por aqui é mais de três vezes o meu público diário, que eu já acho bom. Pela região em que está e pela proximidade com os meios de transporte, há um potencial enorme. Poxavida, passam trens, ônibus e um ferry boat (catamarã) aqui ao lado. Eu não tenho isso lá. Requer investimento? Requer. É papel da prefeitura? Mais uma vez: não, é não. É correto ela fazer um edital, mas um que dê as mesmas condições para os permissionários participarem.”
Vocação nas cidades
O que mais me impressionou (no Mercado Público de Porto Alegre) foi o movimento. As 100 mil pessoas que passam por dia por aqui é mais de três vezes o meu público diário. Pela região em que está e pela proximidade com os meios de transporte, há um potencial enorme.
LUIZ CARLOS BRAGA
superintendente do Mercado Central de Belo Horizonte
“Nesse ponto, regulamento é tudo. Você foi recentemente ao mercado de Florianópolis? Com todo respeito, mas virou um camelódromo. Em Aracaju (SE), virou lojas de roupas enfileiradas, um varal gigante. Se você deixa o produto chinês entrar, acabou o mercado. Aí você tem que entrar com regulação. No Mercadão de São Paulo, por exemplo, há bancas que fecham durante o dia para funcionarem como atacadistas para restaurantes à noite. Não pode o mercado aberto com banca fechada. Três bancas fechadas matam um corredor.”
Horário de atendimento
“Já fizemos pesquisas sobre abrir à noite, mas além de ser desgastante para os mercadeiros, estamos em uma região em que as pessoas preferem ir pra casa ou ir para um bar depois de determinado horário. Então, funcionamos até as 18h. Mas uma tradição local é abrirmos todos os dias: é das 7h às 18h em dias de semana e das 7h às 13h aos domingos e feriados. Em 91 anos, só fechamos um único dia: 1º de julho de 1980, para a visita do papa João Paulo II.”