Se alguém convidar os amigos para ir a uma festa na Rua Dom Pedro II, provavelmente receberá de volta reações de estranhamento. É mais fácil encontrar um convento na Cidade Baixa do que uma casa noturna na via que cruza os bairros São João, Higienópolis e Auxiliadora, na zona norte de Porto Alegre. Mas quem nasceu nas décadas de 1970 e 1980 sabe que o perfil diurno local contrasta com um passado de badalação nem tão distante.
Hoje voltada para o comércio e serviços, a rua foi um dos principais pontos do entretenimento noturno na Capital durante a década de 1990 e o começo dos anos 2000.
— Na Dom Pedro (II), uma vez, eu contei 22 casas noturnas. Algumas duravam um fim de semana — recorda o empresário Edson Dutra.
Proprietário da Fever Club, no Moinhos de Vento, Dutra foi o mais longevo empreendedor noturno da via. Inscreveu seu nome na noite porto-alegrense depois de comandar duas boates bem sucedidas em um casarão à altura do número 592.
Trazido da praia de Quintão para a Capital em 1994, o Ragga Store foi o primeiro, e tirou o sono do empresário até engrenar. Voltado para o público adolescente, o local abriu as portas já no fim do ano letivo, às vésperas das férias escolares, e ficou às moscas com a debandada da gurizada para o litoral. Bastou o retorno das aulas, no entanto, para que a casa enchesse, chegando a receber mais de 1,5 mil pessoas em uma única noite.
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Ao longo dos dois anos que ficou em funcionamento, teve pelo menos dois concorrentes diretos: os bares Embaixada de Marte e Nukanua, também voltados para o público (mais) jovem. O Ragga mostrou-se o mais ambicioso dos três, promovendo shows de bandas como Skank e recebendo, no fim de 1996, a então jovem cantora Shakira, que realizava a primeira turnê pelo Brasil. Um amigo de Dutra intermediou o contato com a produção da colombiana que fez um pocket show em uma noite de ingressos esgotados.
O sucesso das festas adolescentes, porém, atraiu a atenção das autoridades. Denúncias sobre o consumo de álcool por menores levou os donos de bares voltados para esse público a uma reunião com o Ministério Público, na qual todos se comprometeram a aumentar o controle. Foi quando Dutra decidiu tomar outro rumo.
— Era difícil controlar (a venda de bebidas alcoólicas para menores). Pensei: “sabe de uma coisa? Vou sair dessa encrenca a abrir uma balada para adulto” — conta.
Depois de encerrar as atividades no auge, Edson passou meses trabalhando na reforma da casa para abrir seu segundo empreendimento, ainda mais famoso. Inaugurado em 1997, o Santa Mônica foi um dos principais responsáveis por consolidar a Dom Pedro II como point aos finais de semana.
O sucesso foi tamanho que virar frequentador do local, que só permitia a entrada de maiores de 18 anos, era visto como consequência natural para os adolescentes que iam nas festas do entorno. Marco Antônio de Lima, que começou a sair na Dom Pedro II na adolescência, com um grupo de amigos da escola, recorda que a transição impunha uma mudança de estilo: as roupas em estilo surfista que faziam sucesso entre os teenagers não eram bem vistas nas festas adultas.
— Quando a gente estava na fila do Nukanua, olhava para o Santa Mônica, o pessoal vestido com roupa mais social, e comentava: quando a gente chegar aos 18, vai atravessar a rua e entrar naquela festa. E entramos mesmo — lembra o assistente de suprimentos Marco Antônio de Lima, 38 anos, que começou a frequentar as festas na Dom Pedro II aos 16.
Para garantir o acesso à festa e garantir lugar para estacionar — à época, ir para a balada com o próprio carro era considerado normal — , a estratégia era chegar “cedo”, antes das 23h. Por volta da 1h30min era o ponto alto da noite, que atraía, inclusive, moradores de municípios da Região Metropolitana.
Público descolado e cartão VIP
Se no final dos anos 1990 o negócio de Dutra era a principal referência de balada da Dom Pedro II, no começo da década quem movimentou a via foi José Cássio Rodrigues. Ex-sócio do Porto de Elis, que fez fama na Avenida Protásio Alves, ele foi o criador do Publicitá Café, que abriu as portas em 1991, na esquina da Dom Pedro II com a Travessa Cunha Vasconcelos.
— Naquela época, todas as casas tinham o mesmo estilo, que eu chamava de pa cum bum. Tocavam a mesma coisa. A gente tinha um ambiente mais solto, rolava música brasileira — recorda.
Voltado para um público universitário descolado, o bar foi dos primeiros a investirem em noites de música nacional, do rock à MPB. O ambiente descontraído explorava referências retrô: além de uma juke box, uma televisão antiga passava imagens de desenhos animados. A certa altura, a carcaça de um Maverick foi usada na decoração. No fim do primeiro ano, nota publicada em Zero Hora descreveu o clima do local como o de um “salão de festas de condomínio, com gente que se conhece e portas fechadas se a lotação excede 150 pessoas”.
Os anúncios em spots de rádio ajudaram a bombar as festas, que rolavam de segunda a segunda. Em 1992, outra reportagem publicada no caderno ZH Zona Norte alertava para uma mudança no perfil da Dom Pedro II que, segundo o título, havia “trocado o dia pela noite”: “hoje a balbúrdia do trânsito se estende à madrugada, e as luzes de neon colorido passaram a brilhar nas fachadas das casas noturnas, restaurantes e bares”, dizia o texto.
Somente nas imediações do Publicitá havia pelo menos dois outros pontos movimentados: o vizinho Paisley Park Bar e o Gharden, no imóvel onde mais tarde funcionou o Nukanua. Enquanto a maioria lotava, principalmente, às sextas-feiras e sábados, no Publicitá, o dia mais movimentado era o domingo, quando a noite começava mais cedo, com um happy hour, seguido de uma festa que não raro ia madrugada adentro.
No auge da casa, que recebeu de famosos locais a atores globais, as filas eram tantas que Cássio criou um sistema para garantir o acesso dos mais chegados. Fabricou 180 cartões VIP que isentavam o ingresso e davam acesso à casa por uma porta lateral.
Amiga de Cássio, a terapeuta holística Tatiana Fadel Rihan recorda até hoje o número do seu cartão: 33. Conta que, além do ingresso facilitado, os VIP tinham uma sala exclusiva, conectada com o palco. Depois dos shows, assumiam o local como pista de dança. Outra regalia era a possibilidade de beber fiado: tudo o que era consumido durante a noite era registrado no cartão e enviado para a casa do cliente, que pagava uma conta mensal.
— Eu só me dava mal com isso, porque tinha uma cunhada homônima. Quando ela ia, eu sempre acabava pagando as contas. Mas sou órfã (do Publicitá) até hoje. Ia praticamente todos os dias — recorda.
Conflitos com os vizinhos: o começo do fim
O movimento até então inédito na região inaugurou já nos primeiros anos um problema recorrente nas áreas boêmias da cidade. Incomodados com o barulho até altas horas, alguns dos vizinhos passaram a denunciar os bares à prefeitura.
Em 1993, moradores do entorno reivindicaram o fechamento de diversos estabelecimentos, entre eles o Publicitá. O bar resistiu, mas, em 1995, teve o alvará suspenso, reagindo com um protesto silencioso: algumas camisetas penduradas em frente apelavam pela reabertura do local, que ocorreu logo depois.
O fim definitivo veio em 1997, segundo Cássio, por “razões pessoais”, e marcou sua aposentadoria precoce da noite porto-alegrense. À época com 30 anos, voltou à faculdade de Direito e, mais tarde, abriu o escritório onde hoje preserva emolduradas as reportagens sobre o empreendimento da juventude.
Não foi o primeiro nem seria o último a fechar as portas na Dom Pedro II. Os conflitos frequentes com a vizinhança afugentaram boa parte dos empreendedores noturnos, e mostraram-se determinantes para o futuro da via: depois do período conturbado, diversos proprietários vetaram o aluguel de seus imóveis para casas noturnas.
No começo dos anos 2000, já eram poucas as baladas na via, que, com a construção da Terceira Perimetral, tornou-se ainda menos atrativa como área boêmia. Mais longevo de todos, o Santa Mônica seguiu até 2013 (com uma pausa entre 2006 e 2008, quando o local foi interditado por falta de alvará). Nem de longe, no entanto, lembrava a badalação dos primeiros anos, quando as filas para ingressar na casa se estendiam por mais de uma quadra, e o local pouco dependia do investimento em publicidade.
— Antigamente a gente só abria e lotava. Não precisava de nada. No auge, a gente chegou a ter 2,5 mil numa noite. No final, iam 100 pessoas. Fechou pelo esvaziamento — avalia Edson Dutra.
O casarão onde a noite porto-alegrense ferveu por quase duas décadas foi demolido — destino semelhante tiveram outras construções que abrigaram casas noturnas daquela época. Já os imóveis que permanecem de pé deram lugar a lojas ou escritórios comerciais e de serviços.
DJ em diversas baladas que fizeram sucesso na década de 1990, Luciano Mazim acredita que o fim da noite da Dom Pedro II deve-se a múltiplos fatores. Ele observa que o movimento segue uma tendência da Capital, de explorar por algum tempo regiões e estilos de empreendimentos específicos, mas também tem relação com o próprio modelo de negócio, que passou a ter de atender a diversas exigências após a tragédia na Boate Kiss, em 2013.
— Antigamente, os DJs ditavam as músicas das casas noturnas. Hoje quem dita são os frequentadores. Acredito que a fórmula cansou. É uma coisa natural de Porto Alegre. Mas também está muito mais difícil abrir uma casa noturna — observa.
Veja outros depoimentos
"Fui promoter do Santa Mônica e do Nukanua. Tempo bom, entrava de graça, mas levava uma galera comigo. Era uma boa promoter, ganhava uma boa grana e me divertia muito." Greice Paixão
"Conheci minha esposa Samara Zuge em uma festa no Santa Mônica. Amor de balada, hahahaha. Faz 11 anos que vivemos juntos." Fernando da Silva Ferreira
"Tinha uns 16, 17 anos quando frequentava Cord e Nukanua (quando era na Avenida Taquara). Tinha os convites coloridos do Cord e convite pro meu aniversário no Nukanua até pouco tempo." Konrath Junior
"Eu e meu marido marcamos nosso primeiro encontro no Santa Mônica. Eu ainda fui buscar ele em casa no meu carro! Estamos juntos há 22 anos." Suzane Vitória
"No final do ano de 1994, eu iria fazer, no Publicitá Café, o primeiro show da minha carreira solo. Mas, na hora, apareceram Smic e Smam por conta de reclamação de um vizinho, e a coisa ficou bem complicada a ponto de cancelarem o show. Fecharam o bar naquela noite de sábado. Em verdade, nem era pelo som do bar a reclamatória, mas pela fila de clientes que ficava do lado de fora causando uma conversa alvoroçada. Sem show e com a casa fechada naquela noite, acabamos todos indo tomar cerveja no Elo Perdido. Mas o show aconteceu lá sim, só que depois, em outra data, já no ano de 1995. Pode ser que a minha memória me traia, mas se não me engano o proprietário do Publicitá Café era o Casio (sujeito bem amigável) e a promotora de eventos da casa era a Denise Almeida, a quem tenho amizade até hoje. Nesta primeira apresentação como carreira solo, ainda que não autoral, eu estava protagonizando a primeira banda de blues dedicada aos temas de harmônica com execuções fiéis aos autores. Nesta primeira vez que fui fazer o show solo, tentei usar o meu nome próprio (André Serrano) em vez de criar um nome artístico. Foi quando em algum momento a Denise me contou que alguém teria ligado pro Publicitá perguntando se agora então haveria música tradicionalista! Nessa hora, percebi que não seria adequado usar meu nome próprio no meio musical sem evitar a confusão com o estereótipo nativista impresso pelo grupo Os Serranos. Por conta disso que criei o nome artístico, Andy Boy, que me acompanhou por muitos anos e pelo qual sou mais conhecido entre os mais veteranos do gênero." Andy Serrano
"Muito frequentei o Publicitá, mas foi no Fim de Século que meu destino foi selado. Fiquei com meu marido e estamos juntos há 24 anos." Renata Moura Onocchi