Um bocado pelo frio repentino, outro pelas restrições do distanciamento social, a Rua dos Andradas ainda está bem esvaziada no início da manhã de quinta-feira. Uma figura curiosa caminha apressada com um sobretudo preto por cima do terno bege, trespassado por correntes douradas. Carrega uma pasta de couro e uma ecobag lilás cheia de papéis. Quando questionado o que faz na rua naquele dia, baixa a máscara vermelha e emposta a voz.
– Sou deputado federal. Promotor e oficial de Justiça. Trabalho não falta.
– E como é o teu nome?
– Jorge.
Não é por aquele nome que ele é conhecido na Câmara de Vereadores, aponta o repórter. O homem então sorri, ergue o indicador e emposta a voz grave:
– Caju, o Homem da Casa do Povo!
Jorge de Oliveira, o Caju, é uma figura querida e folclórica da Câmara Municipal, outrora tema de reportagem em GaúchaZH. Costumava passar os dias nas galerias da Câmara, tomando nota e interagindo com os vereadores como se fosse um deles – ou, no mínimo, um dos seus assessores mais dedicados. Raramente é avistado fora dela naquele horário. Mas, com os vereadores legislando de suas casas, Caju é um dos que circulam meio sem rumo pelas ruas de Porto Alegre passados 110 dias do primeiro decreto de medidas de enfrentamento à covid-19 (completos neste sábado, dia 4).
Vendedor de café na Praça da Alfândega desde a década de 1990, Danilo Fonseca, 72 anos, é ao mesmo tempo testemunha e prova viva de que um dos males trazidos pelo coronavírus é o tédio. Segundo ele, muitas das pessoas que circulam por ali o fazem não por terem um objetivo inadiável – desde 29 de junho, o comércio não essencial está fechado para coibir aglomerações – mas por estarem angustiados em casa, precisando de ar livre e de papo.
Danilo não se apresenta como exemplo, mas até oferece um café de cortesia ao fotógrafo para esticar um pouco a conversa. Tem filhos e netos formados em faculdade, e prova mostrando fotos no celular. O nome da filha, Kelly Cristina, copiou da primogênita de Pelé. O do filho, é inspirado no automobilista francês Jean-Pierre Jarier.
– Me incomodei no cartório. Era uma época que era proibido registrar nome estrangeiro. Discuti: ora, se o Pelé pode, eu posso também.
Por circular no dia a dia do Centro Histórico, se privou de outros contatos com a família. Com os filhos, conversa pela internet, mas o problema é a mãe nonagenária que mora em Rio Grande. Em razão da covid-19, não pôde visitá-la no Dia das Mães e não sabe quando o fará. Embora reclame do risco de contrair a doença, a aposentadoria não é o suficiente para fazê-lo ficar em casa. Está nas ruas mesmo faturando 30% do normal em café.
Com o tempo de distanciamento social se alongando, as ruas da capital gaúcha são cheias de contradições que os entrevistados expõem sempre no papel de parte prejudicada da equação. O lojista fechado por força de lei, por exemplo, aponta um dedo para o movimento de pedestres, que insiste em ocorrer em índices mais elevados do que deveria alheio ao comércio, e outro para a prefeitura:
“Eu não posso trabalhar, mas o povo pode passear. Tenho meu rancho pra pagar”, diz o cartaz escrito à mão em uma cartolina sobre as portas fechadas de uma loja de roupas.
Com o fechamento da economia e uma ajudinha do clima, o índice de isolamento social da semana passada (até quinta-feira) foi de 43,7%. A prefeitura almeja 55%.
Protesto é a estratégia de uns. Clandestinidade, de outros. Perto da Praça da Alfândega, GaúchaZH testemunhou uma ampla loja de roupas com duas portas: a externa, fechada, ocultava a interna, aberta. Entre elas, um corredor acessível por uma escadinha lateral, escondida do olhar de quem passa pela rua. Questionada se a loja estava funcionando, a atendente desconversa:
Os supermercados são ambientes fechados e têm multidões de pessoas para entrar todos os dias. Mas são essas seis que eu poderia atender aqui no restaurante, de janela aberta, que podem transmitir o vírus
RAFAELA CAMARGO
do restaurante Tempero da Nona
– Estamos fazendo umas fotos para o site.
– Mas eu posso comprar agora se eu quiser?
– Pergunta ali para a dona – diz a atendente, olhando nervosa para o crachá do repórter.
A 1,5 quilômetro dali, na Avenida Farrapos, a história não surpreende Rafaela Camargo, 23 anos. Segundo a atendente do restaurante Tempero da Nona, há diversos estabelecimentos na região operando com um funcionário pronto para abaixar a cortina de ferro assim que a fiscalização aponta.
– Não acho certo, mas também não vou dizer que eu não entendo. Tem gente que não tem outra opção senão arriscar abrir – opina.
De máscara, avental e chapéu, Rafaela trabalha atrás de uma mesa improvisada como balcão na porta do restaurante do pai, Luis Carlos Jacques. Obedecendo ao decreto em vigor, o sistema é exclusivo de viandas. Há múltiplas promoções em cartazes na vidraça: café ou refri + salgado por R$ 6, almoço pago adiantado tem desconto. Mesmo assim, são 12h30min e apenas três viandas foram vendidas. Rafaela também tem uma contradição para reclamar.
– Os supermercados são ambientes fechados e têm multidões de pessoas para entrar todos os dias. Mas são essas seis que eu poderia atender aqui no restaurante, de janela aberta, que podem transmitir o vírus – ironiza.
No Tempero da Nona, as restrições chegaram ao limite. Dos cinco funcionários, só restou o cozinheiro.
– A relação com os fornecedores é a mais difícil. Quando reclamam, pergunto se eles querem o telefone do governador. Estou aberto porque o proprietário do prédio foi camarada no aluguel. É que ele sabe: se eu fechar, quem vai alugar? Olha para o restante dessa quadra – declara Luis Carlos.
O empresário se refere ao quarteirão da Farrapos em que apenas operam ele e um posto de gasolina, mas poderia tranquilamente dizer cidade toda. Em Porto Alegre há placas de “aluga-se” em profusão em praticamente todas as grandes avenidas.
O número de alvarás encerrados em Porto Alegre ainda não reflete esse efeito: são 4.836 baixas desde março, frente a 4.240 emissões de alvará, segundo a Sala do Empreendedor. Uma das interpretações do poder público é que a baixa do alvará é a última etapa do processo de fechamento, enquanto a emissão do alvará é uma das primeiras. E este índice segue aquecido pela quantidade de negócios precisando se reinventar.
Ainda sem os dados de junho, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados apontou um maio menos ruim em relação ao desemprego em Porto Alegre. Se em março e abril foram 24.199 e 21.589 desligamentos, em maio o índice caiu para 13.718 e teve leve subida nas admissões: foram 9.331 contratados frente a 8.296 em abril.
No Sine Municipal, a impressão é de que como tudo em relação à covid-19, o cenário de empregos terá de ser analisado por uma lógica própria. Curiosamente, o número de encaminhamentos de seguro desemprego entre janeiro e junho de 2019 pela instituição foi maior do que o mesmo período de 2020 – 5.809 e 4.166, respectivamente.
Podem influenciar o prazo para o encaminhamento – de 120 dias, o que tornaria cedo para analisar o impacto da pandemia – e até o respeito às medidas de distanciamento, que adiou a visita ao balcão do Sine.
– A maioria poderia fazer esse encaminhamento online, mas muita gente não sabe como ou faz questão de vir até aqui. Algumas pessoas simplesmente não têm essa percepção de que podem efetuar uma tarefa, uma compra, um encaminhamento de benefício sem sair de casa – declara a diretora do Sine, Susana Hoff Santos.
Já a procura de emprego oscila no ritmo dos decretos. Em abril, apenas 305 candidatos foram encaminhados a novas vagas. Com a reabertura de parte da economia, em maio, foram 1.889. Porém, junho demonstrou nova retração: com 880.
Não está de todo errado quem questiona a eficácia do distanciamento social ao ver as ruas se enchendo de carros. Se desde o início da pandemia o sistema de ônibus tem lidado com uma redução entre 61% e 79% de passageiros – na última semana de junho, foi de 70% – o mesmo não ocorre com os veículos particulares.
De acordo com a EPTC, se comparados a última “semana típica” antes da pandemia, entre 7 e 14 de março, maio teve uma redução média no trânsito de 29%. Em junho, o índice caiu para 21,6%. Além de pequena, a redução também teve um efeito cruel. A percepção das autoridades é que as ruas mais esvaziadas têm proporcionado menos acidentes em geral, mas mais acidentes graves, o que apareceu nos últimos índices de mortes no trânsito da Capital. Se em abril foram apenas duas mortes, o dado dobrou em maio (4) e novamente em junho (8) – mês em superou as fatalidades de 2019 (5) e 2018 (7) no mesmo período.
– Reclamam que estamos fazendo tocaia, armadilhas para multar gente no meio da pandemia. Mas se não fiscaliza, acontece isso aí mesmo. O pessoal pisa no acelerador e acaba se matando sozinho – declara um agente da EPTC.
Em meio a tantas contradições, talvez a maior seja a de que, circulando pela cidade para conversar sobre os efeitos da pandemia, o que menos se fala é na própria doença. Poucos conhecem alguém que a contraiu. Ela finalmente aparece quilômetros longe do Centro Histórico, quando se visita a periferia de Porto Alegre.
Embora os dados oficiais apontem os bairros mais nobres com os maiores focos da covid-19 na cidade, os relatos levam a crer que a pandemia está migrando conforme os casos se multiplicam, e ainda muito subnotificada. No Rubem Berta, a pandemia enfim ganha nomes de parentes e rostos de conhecidos.
Davi Moreira, 34 anos, cabeleireiro e proprietário do Davi Du Corte, tem uma prima que contraiu a doença. Enquanto raspa cabelos há meses sem cortes, ouve relatos de pessoas com a doença isoladas no condomínio logo à frente, um dos maiores do bairro. Desde então, passou a exigir a máscara dos clientes antes de abrir a porta de vidro.
Dono da churrascaria Espetão na Brasa, alguns metros à esquerda, Luiz Antônio Lima se sente ainda mais próximo da doença. Um senhor que trabalhava na calçada à frente vendendo churrasquinhos morreu da covid-19. A suspeita da família é de que ele tenha contraído do filho, que só soube da doença depois do diagnóstico do pai e não teve sintomas, logo não abandonou o emprego de cobrador. No grupo do futebol, a esposa de um dos amigos está entubada em um hospital de Canoas.
– Olha, é complicado. O medo de falir existe, mas se dá um jeito. Meu medo maior é de pegar (a covid-19) ou de precisar de um hospital nos próximos meses por outro motivo qualquer. Parece que tudo que acontece na cidade fica mais grave por aqui – desabafa.