O relógio do painel sobre as galerias vai marcar 17h. Enquanto um vereador discursa sobre uma das tantas emendas que deviam ser apreciadas naquela tarde, parlamentares e assessores tagarelam em panelinhas de costas para a tribuna. Risadas entregam que o assunto também é outro na Mesa Diretora, e o único repórter no plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre se isola num canto para entrevistar um político a respeito de outro assunto.
Apenas uma pessoa parece ouvir o que é dito no microfone. Vestindo camisa xadrez vermelha, gravata lilás e casaco amarelo queimado, um senhor negro sexagenário franze a testa e escora a caneta no canto da boca com cara de concentrado. De pé junto à mureta que separa o público dos vereadores, assente com a cabeça de vez em quando e faz anotações em um calhamaço de folhas de ofício que conseguiu em algum gabinete. Assim que o vereador termina o discurso, estica os braços para dedicar aplausos sonoros.
Esse é Jorge de Oliveira, 65 anos, mais conhecido como Caju por causa da semelhança com o campeão mundial pelo Grêmio em 1983. E os aplausos solitários foram uma das manifestações mais contidas dele naquela tarde. É que Caju não apenas assiste: também participa das sessões do Legislativo.
— Chegou o mestre! — berra quando Valter Nagelstein (MDB) assume o comando da Mesa Diretora.
— Melhor professor do Estado!! — bajula, em bom som, Alex Fraga (PSOL).
— Fernanda Melchionna, é uma deusa! — aponta para a vereadora.
Não é raro ver as galerias praticamente às moscas durante as sessões, mas Caju comparece, religiosamente, às segundas e quartas. Quando o tema atrai público — e, segundo ele, isso só acontece em tempos de greve ou de pauta de interesse para alguma categoria —, vibra tanto ou ainda mais do que os manifestantes. Um vídeo seu pulando de braços abertos, comemorando em meio a representantes LGBT como se seu time tivesse ganhado um campeonato nos pênaltis, recebeu a trilha We Are The Champions e viralizou nos corredores da casa, com letras garrafais ao final: "Caju, campeão 2018".
— Não sei bem em que momento nem por qual razão ele caiu aqui. Mas se "aquerenciou" e virou um personagem peculiar: toma nota dos discursos, anima as galerias, aplaude oposição e situação quando a fala o sensibiliza, faz elucubrações filosóficas um tanto desconexas. É uma figura — relata o presidente Valter Nagelstein, sem deixar de ressaltar que Caju é também "uma alma boa".
O morador da Zona Leste não frequenta a Casa há muito mais do que um ano. Mas já integra um rol de figurões das galerias que atravessa a história do Legislativo. Servidores lembram com saudosismo da Frida, uma senhora com as linhas do rosto fortemente marcadas pela idade que passava a tarde fazendo anotações de cara fechada, e do Senador, um senhor engravatado que se portava de maneira formalíssima.
— Acho que eles vêm pelo o acolhimento, sempre tem alguém que dá um carinho — opina Leonardo Contursi, repórter fotográfico da Câmara.
Mas o motivo alegado por Caju para dedicar tantas horas da semana para as sessões é outro:
— Eu tô estudando. Isso aqui é uma psicologia.
E não duvide: o homem pode dar um nó na cabeça de quem tenta entender o que ele quer dizer com isso. Depois de afirmar que "tudo é um interesse de poder", emenda uma ideia na outra com entonação aceleradíssima: o raciocínio parte de Brasília, passa pelo incêndio de Roma e termina com sua crença em Jesus Cristo:
— Tem que ter muita fé, muita fé.
Além de falar muito rápido, Caju se apropria (nem sempre com muita coerência) de um vocabulário complicado, que ouve na Câmara diariamente. "Indulto" é uma das suas palavras favoritas, coringa em qualquer frase sobre qualquer assunto:
— Na psicologia, na cultura do nosso andamento, que a gente está vivendo num mundo muito bizarro, onde ninguém tem palavra com ninguém, ninguém tem mais sensibilidade com a vida, as coisas estão tudo assim: emenda, não desemenda, despacha ação, palavras, indultos sem concretização social, coisa muito feia. Então acho que isso aqui é uma aprendizagem.
A Câmara também é uma forma de Caju se sustentar: é onde costuma cobrar o que chama de "dízimo" de vereadores e funcionários. Líder do governo, Moisés Barboza (PSDB) acredita que ele tem um cronograma para passar em todos os gabinetes, pedindo dinheiro ou tentando vender alguma coisa antiga — no seu escritório, costuma comparecer às sextas-feiras. Por algum motivo, Caju encrencou com o parlamentar na saída da sessão, dizendo-se magoado. Mas com R$ 50 estava tudo resolvido, garantiu o idoso. Sem deixar de sorrir, Barboza se esquivou pela porta principal do plenário.
— Tem choradeira, tem o "não", tem o "vem amanhã". Eles fazem sofrer, né? — comenta Caju.
Segundos depois, alguém teve a ideia de apresentar a figura ao secretário da Fazenda de Porto Alegre. Caju não perdeu tempo.
— Temos muito o que conversar — disparou, despertando um riso meio nervoso em Leonardo Busatto.
Caju se diz publicitário, produtor musical, músico e compositor. E garante que já está tudo acertado para começar a cursar Direito na UFRGS e diz ser amigo de grandes empresários gaúchos. Em seu Facebook, há pérolas: montagens apertando a mão de Barack Obama e abraçando Will Smith. Mas uma coisa ninguém pode desmentir: além da Câmara, ele brilha em outras passagens importantes de Porto Alegre. Funcionários do Legislativo comentam que foi uma das pessoas a carregar o caixão de Paulo Sant'Ana — e ele está em vários registros feitos pelos fotógrafos da RBS no enterro.
Em qualquer situação, Caju aparece vestido com pompa. Está sempre de gravata e usa muito blazer. É um dos homens mais alinhados ao "dress code" da Câmara Municipal:
— A casa do povo tem que ter o respeito. Ninguém tem que entrar na casa do povo de chinelo, de abrigo, que é um abuso. No momento que entrar no portão pra dentro, tem que primeiramente rezar e pedir a benção àqueles que cuidam das coisas do povo.
Por falar tanto em povo, ele fez um pedido à reportagem:
— Bota esse título: "O homem da casa do povo".