Londres, Barcelona, Paris, Nova York, Bogotá e Roma têm pedalado para reagir ao coronavírus — literalmente. Essas são algumas das cidades ao redor do mundo que estão preterindo o transporte público em favor das bicicletas, meio recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por facilitar o distanciamento social. E há a intenção aproveitar a explosão do uso de bikes para transformar em definitivo a mobilidade urbana.
Porto Alegre pode não espelhar o pico de vendas de bicicletas visto na Europa — uma varejista francesa chegou a registrar aumento de 300% em suas vendas online —, mas demonstra aquecimento desse mercado em meio à crise econômica. De 10 lojas consultadas por GaúchaZH, nove tiveram alta nas vendas ou nos serviços de reparo durante a pandemia.
— Sentimos, sim, o reflexo desse boom visto em grandes capitais. Tendo em vista que muitos negócios estão ruindo, a gente tem que agradecer — comenta Everson Ribas, o Dudu, proprietário da Dudu Bike Shop na zona sul da Capital.
Em comparação ao mesmo período do ano passado, sua loja teve aumento de 15% nas vendas. Nesta semana, já estava sem estoque de Caloi, uma das marcas mais populares no Brasil. Os modelos mais baratos têm maior demanda, segundo o empresário, em razão do momento de instabilidade financeira.
— O cliente não sabe se vai entrar grana, então não está investindo em bike de maior valor agregado. E quem já tinha bike, está reformando e botando em uso também.
Henrique da Silva Paladini, que trabalha com bikes há mais de duas décadas, viu crescimento expressivo nas vendas e ainda maior nos serviços de reparo. Estima que sua demanda de oficina aumentou 60%:
— Muitas pessoas que tinham bicicletas paradas há três, quatro anos trouxeram para fazer reforma, para fazer exercício ou usar de meio de transporte. Acho que essa é a tendência agora.
Sócio da Maiss Bike Store, Pablo Weiss ressalta que o número de compradores já vinha aumentando nos últimos três anos. A pandemia acabou dando um novo impulso — o acréscimo nas vendas, em comparação ao mesmo período do ano passado, foi de 28%. Mas ele teme que Porto Alegre ainda não tenha infraestrutura para manter esses "ciclistas de pandemia" permanentemente.
— Me parece que aqui o gestor público acaba priorizando o modal errado, de transporte individual — opina.
Pablo lembra que a cidade deu o exemplo ao criar, há 11 anos, o Plano Diretor Cicloviário. Mas até hoje, pouco mais de 10% das ciclovias previstas saíram do papel. E o espaço reservado para ciclistas, destaca ele, é essencial para arrematar novos usuários de magrelas:
— Os ciclistas mais experientes não consideram ciclovia fundamental, mas ela vai ajudar a conquistar novos. Se perguntar às pessoas por que não usam, tu vais ver que é por medo de não ser respeitado no trânsito.
Na avaliação do empresário, incentivar a instalação de bicicletários e outros lugares para estacionar a bicicleta com segurança também é essencial — como ciclista, vê essa dificuldade em Porto Alegre. Luis Antonio Lindau, PhD em transportes e diretor do programa de cidades do WRI Brasil, acrescenta:
— O que as pessoas buscam é segurança na hora de pedalar, e por isso precisa ter esse espaço reservado na via, separando o ciclista do motorista, e também estacionamento. Os lugares onde o uso de bicicleta avança têm essas duas questões resolvidas.
Lindau diz que um evento da proporção de uma crise sanitária mundial pode acabar contribuindo para levar mais pessoas a caminhar e andar de bicicleta, transformando a fotografia do trânsito:
— A pandemia pode ajudar a impulsionar isso, então a hora é agora.
Não é novidade que, em período de dificuldade, surgem soluções para a mobilidade urbana. Voluntária da ONG Bike Anjo e membro da Graxaim Bicientregas, Tássia Furtado lembra que um dos fatores que levaram Amsterdam, na Holanda, a ser um case de cidade para ciclistas foi a crise do petróleo dos anos 1970.
— Agora as pessoas estão tirando suas bikes por questão econômica ou de saúde. Se a gente conseguir manter uma porcentagem delas, transformar essa mudança em hábito, só temos a ganhar: gera uma mobilidade saudável, diminui o atendimento no SUS por doenças circulatórias, vai incentivar o comércio local de bairro, tornar a cidade mais segura e favorecer o meio ambiente — ressalta Tássia.
A cicloativista e documentarista Denise Silveira, gaúcha radicada em São Paulo, ressalta que o medo do contágio por doenças infectocontagiosas pode trazer um boom de bikes, mas também uma explosão de compra de carros, que pode congestionar ainda mais as ruas das capitais e gerar poluição:
— Mais bikes nas ruas é uma tendência, já está acontecendo. Mas ainda perde em relação ao carro por falta de políticas públicas para a malha cicloviária. Essa seria a hora de investir, como a Europa tem feito.
Nas últimas semanas, as ruas de Londres têm passado por transformação, com a ampliação de calçadas e a demarcação de novas ciclovias. O objetivo do governo é multiplicar por 10 o número de quilômetros percorridos de bicicleta.
— Será a nova era de ouro para o ciclismo — disse o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
Há também iniciativas de incentivo em dinheiro no continente europeu. O governo francês criou um fundo de 20 milhões de euros para financiar reparos de freios, pneus e luzes em bicicletas. Na Itália, foi aprovado um projeto para dar até 500 euros para os moradores comprarem magrelas. Ainda foram planejados 150 quilômetros de ciclovias em Roma, conhecida pelo trânsito caótico.
Outras cidades que têm apostado em ciclovias temporárias são Bogotá, na Colômbia, Barcelona, na Espanha, e Nova York, nos Estados Unidos.
Ciclovias temporárias poderiam virar permanentes com o tempo
A implantação de ciclovias temporárias em Porto Alegre tem sido estudada pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Rodrigo Mata Tortoriello, secretário extraordinário de Mobilidade Urbana da Capital, não adianta em quais vias, mas destaca que vê como uma boa alternativa demarcar espaços com uma sinalização mais básica, que poderia ser complementada depois, virando ciclovias permanentes.
Hoje, Porto Alegre se aproxima de 54 quilômetros de pistas para ciclistas, como adiantou o colunista Jocimar Farina nesta sexta-feira (29). Uma das últimas ruas que receberam a intervenção é a Avenida Mauá, em aproximadamente 700 metros, e a Avenida Ipiranga teve o trecho da ciclovia que faltava liberado para o uso.
O secretário ressalta que o departamento se esforça para conectar pedaços de ciclovias já existentes, dando forma a uma rede cicloviária. Nas próximas semanas, a EPTC irá concluir 1,3 quilômetro de pista específica para as bicicletas na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, entre a Rótula das Cuias e a Avenida Erico Verissimo. Isso possibilitará a conexão entre as ciclovias já existentes na Rua José de Alencar, Avenida Ipiranga, Rua José do Patrocínio e Avenida Edvaldo Pereira Paiva, na orla do Guaíba.
Sobre Porto Alegre ter atingido pouco mais de 10% dos quilômetros de rede prevista no Plano Diretor Cicloviário, de 2009, ele justifica que se trata de um projeto ambicioso, que vai levar tempo para ser cumprido (previa 495 quilômetros), e reitera que, muitas vezes, a prefeitura esbarra em falta de recursos.
Novos ciclistas também buscam se exercitar ao ar livre
Além de meio de transporte, muita gente tem tirado o pó da bike ou comprado uma para gastar a energia acumulada dentro de casa durante a pandemia. A administradora Michele Batista, 35 anos, fazia parte de um grupo de corrida, que suspendeu as atividades. Trabalhando por home office, viu o estresse aumentar muito "trancada em casa", e alguns amigos sugeriram alternar a corrida, individual, ao ciclismo. Adquiriu uma Absolute nesta semana, para dividir com a filha Yasmin, 11 anos.
Praticar um esporte também foi o objetivo de Cristiano Beltrame, 33 anos. Ele já pensava em comprar uma bicicleta desde que se mudou de Santa Cruz do Sul para Porto Alegre, há um ano e meio, e encontrou na quarentena o empurrão.
— Frequentava muito academia, e a bike veio pela vontade de voltar a fazer alguma atividade física. O ciclismo é possível praticar sozinho.
O fotógrafo da ZH Jefferson Botega já pedalava por esporte e para ir até a redação, mas a pandemia fez com que levasse o hábito para o expediente de trabalho também. Tem se deslocado de bicicleta para fazer a maioria das reportagens, incluindo essa que você está lendo.
Botega se sente mais seguro nela do que usando táxi, aplicativo de transporte ou mesmo os veículos da empresa. De bicicleta, não tem contato com outras pessoas ou superfícies potencialmente contaminadas.
— Só eu tenho acesso a ela, e faço a higienização sempre que preciso — diz.
Tem adorado unir suas paixões — jornalismo, fotografia e bicicleta — e notou que a novidade tem dado mais celeridade ao seu trabalho, especialmente no centro de Porto Alegre:
— Atalho caminhos, ela me leva em locais privilegiados, que o carro às vezes não entra. A bike me deixa na cara do gol.
Estudante volta a andar de bicicleta depois de três anos
Por causa da pandemia, o estudante de Filosofia Anderson Rodrigo Antunes, 35 anos, reatou o relacionamento com a bicicleta. Até três anos atrás, a magrela e ele eram inseparáveis, mas um incidente no trânsito acabou afastando os dois: ficou com medo de andar depois que quase foi atingido por um ônibus na Avenida Protásio Alves.
Conseguiu uma bike emprestada com uma amiga em abril e voltou a pedalar. Apaixonou-se novamente pelo meio de transporte, ainda mais com o trânsito mais tranquilo do que o habitual em razão do distanciamento social.
— O mais importante para mim é poder me locomover sem contato com as pessoas, porque é difícil ficar totalmente de quarentena, a gente tem que sair, nem que seja para ir no mercado. Com a bike, vou e volto rapidamente, não preciso pegar ônibus e ter contato com outras pessoas, como teria no ônibus.
Anderson reparou que muitos colegas da universidade têm feito o mesmo, e já está juntando grana para comprar uma bike novamente.
— Resgatei valores que tinha lá atrás, que a cidade tinha me tirado. A bicicleta é o meio de locomoção mais humano de todos: faz bem para a saúde, tem menos impacto ambiental e proporciona uma nova forma de se relacionar com a cidade.
Os cuidados para andar de bike
Mesmo de bicicleta, é preciso tomar cuidados para evitar a disseminação do coronavírus. A infectologista Gynara Rezende ressalta que não se deve pedalar em locais com aglomeração de pessoas e é necessário manter-se, no mínimo, dois metros afastado dos outros. Lembre-se que a bike é para ser usada como forma de deslocamento ou para esporte: não é para ir até a orla do Guaíba tomar chimarrão, acrescenta Gynara.