O proprietário de uma loja de materiais agrícolas fala em encher as misturadoras de cimento com chope. Outro empresário cogita sentar com uma cadeira de praia em frente à saída da pista e estourar um espumante.
É com um misto de alívio, ironia e ainda uma leve desconfiança de mais um adiamento que os vizinhos da obra esperaram a inauguração da trincheira da Ceará, na zona norte de Porto Alegre, na manhã desta quarta-feira (4).
Dezessete horas antes da inauguração, sob o letreiro de "Bem-vindo", uma equipe ainda trabalhava soldando e pintando 1,3 mil metros quadrados de grades laterais de proteção ao longo dos 320 metros de via, uma forma de impedir que o lixo se acumule nas laterais e atrapalhe o escoamento da água em caso de chuva.
Metros à frente, nos comércios numerados com as primeiras centenas da Avenida Ceará, os relatos são de sete anos de escombros e dificuldades financeiras. Um deles fala em quase 10 anos:
— As pessoas esquecem que poucos anos antes da trincheira, já tínhamos sido afetados pela obra do viaduto Leonel Brizola (inaugurado em 2008). Mas esta aí é a pior obra da história de Porto Alegre — enfatiza Luiz Henrique Zilles, proprietário da Zilles Implementos e Fertilizantes.
O empresário se diz "um dos teimosos" que continuou no local em que a empresa foi fundada 32 anos atrás. Porém, assistiu inúmeros negócios falindo ou desistindo da região conforme a obra se eternizava.
Outro resiliente foi Wilson Brufatto, da Free-Bat Baterias, mas não sem esforço. Antes com seis funcionários, hoje tem apenas um. Antes um atacado de baterias automotivas e prestador de serviços, ele manteve apenas o varejo, e somente porque é dono do imóvel.
— Eu ganhava um bom dinheiro com elétrica automotiva, mas como eu ia prestar serviço se os carros não conseguiam mais acessar a loja? Certa vez eu reclamei e me responderam que era apenas eu e outros dois que reclamávamos. Mas é claro, éramos os únicos proprietários! Quem era empregado caiu fora o quanto antes — conta.
Com o tempo, Brufatto deixou de acreditar nos prazos do poder público e passou a se informar sobre a obra com a "rádio peão", mais fidedigna ao real andamento dos trabalhos. Oferecendo água, sombra e conversando diariamente com os operários, Brufatto sabia de antemão quando a obra paralisaria por falta de pagamentos, cobrava mais capricho em frente à sua fachada e acompanhava processos absurdos, como três trocas do asfalto na saída da trincheira por erros de cálculo.
Agora, com o fluxo normalizado, o empresário de 63 anos cogita retomar o serviço de elétrica reformando a própria loja. Mas só de pensar em derrubar uma parede para colocar o maquinário para suspender veículos, ele suspira:
— São 24 anos nesse negócio. Somando o viaduto e a trincheira, são 12 anos. Imagina o meu cansaço de obras.
Além da sujeira e dos problemas de acesso à região, Laura Webber, diretora de outra empresa que está há tempo na região, a Comfibras, reclama da proliferação dos furtos conforme a obra alternava períodos de trabalho e abandono. Da Comfibras levaram até os exaustores de ar-condicionado. Esse problema, ela espera ter fim com a inauguração.
— Não sei se alguém contabiliza isso nos custos de uma obra, mas antes de uma outra aventura, eu gostaria que a prefeitura considerasse a perda para a economia da região. Em sete anos, sabe-se lá quanto se perdeu aqui em empregos, negócios e impostos para uma pista passar debaixo da outra — declara Laura.
O trânsito no local será aberto às 9h desta quarta, sem qualquer cerimônia oficial.
A trincheira
Planejada inicialmente para a Copa de 2014, a trincheira da Ceará tem o objetivo de facilitar o fluxo de veículos da região do Aeroporto e da BR-116 em direção à área central de Porto Alegre, diminuindo os congestionamentos na Avenida dos Estados e na Avenida Farrapos. A obra vai custar, ao total, R$ 39,27 milhões. O valor é R$ 10,2 milhões maior do que o previsto na licitação, que foi realizada em 2012. A construção sofreu sete adiamentos desde 2016, ano previsto para a entrega.