Em A Resistência (Companhia das Letras, 2008), o romancista Ernesto Sábato escreveu: “É sempre o outro que nos salva. E, se atingimos a idade que temos, é porque os outros foram incessantemente salvando nossas vidas”. O altruísmo do escritor argentino – que, claramente, contou com ajuda alheia para viver até os 99 anos – reflete a atitude de um menos letrado, mas igualmente solidário serralheiro da região metropolitana de Porto Alegre. Paulo Roberto Espíndola da Silva, 59 anos, passou de anônimo trabalhador a reconhecido cidadão de Gravataí após tornar-se protagonista de uma ocorrência policial na cidade. Mesmo que abordado por engano.
— Recebemos a demanda da central de operações, de que teria uma situação de vandalismo. Deparamos com o seu Paulo na praça. Vimos que ele estava, na verdade, consertando os brinquedos — relembra o guarda municipal André Ferreira, um dos agentes que atendeu a ocorrência em 31 de janeiro na Praça Getúlio Vargas, as margens da Avenida Dorival Cândido Luz de Oliveira.
Agachado junto a uma bicicleta ergométrica de pedais quebrados, o suspeito tinha nas mãos as armas do seu trabalho: aparelho de solda, chaves de fenda e um martelo. Denunciado por vandalismo, o único flagrante comprovado foi o do trabalho voluntário no espaço compartilhado.
“Liberado” pelos agentes, seguiu o conserto e o apoio para os pés de quem se exercita na praça voltou a funcionar. Além dos reparos na bike, foram instaladas novas correntes e um reforço na estrutura dos balanços do parquinho, forjados em sua oficina com objetivo de aumentar a segurança ao brinquedo mais usado pelas crianças.
— A praça pertence a toda a comunidade. Isso aqui é nosso patrimônio. Acho que a obrigação de cuidar tem de ser de todo mundo. Se puder fazer alguma coisinha pra melhorar, não me custa nada — afirma, enquanto analisa o objeto recuperado, em funcionamento pleno após sua intervenção.
Ao invés de revoltar-se contra a denunciante, Paulo surpreende ao demonstrar gratidão. Afirma que ela é tão importante quanto ele: “Ao acionar as autoridades, ela demonstra interesse em cuidar da praça”.
Após o susto da chegada dos agentes, teve início o périplo de sucesso entre amigos e vizinhos. Impressionados com a situação, inédita nos três anos em que vigiam as ruas do município, a dupla de guardas posou ao lado de Paulo para uma foto. Com as mãos para trás, como se estivesse algemado, uma detenção foi simulada. A falsa prisão, de fato, tirou dele a liberdade de caminhar sem ser identificado nas ruas do bairro Barnabé. Compartilhada pelo órgão municipal e replicada milhares de vezes através de redes sociais, a imagem trouxe ao tímido senhor uma exposição que ele não procurava. De fala simples com alguns deslizes no português, o trabalhador rechaça a fama e demonstra certo desconforto com as inúmeras vezes em que é procurado para repetir sua história. O que causou espanto ao público faz parte de sua rotina, segundo a esposa, Eliane Gonçalves, 53 anos.
— Esses dias um carro passou por cima da placa (de trânsito) ali da esquina e ele trouxe, soldou e colocou de volta — acrescenta.
Em um canteiro próximo de casa, ao invés de ferros, Paulo trabalhou com a terra. Uma bananeira, uma pitangueira e uma goiabeira tiveram mudas plantadas sob o solo. As atitudes inspiradas não surpreendem o filho. Para Eduardo Gonçalves, 30 anos, seu pai é o melhor exemplo que alguém pode ter.
— Ele sempre foi assim. Gosta de ajudar, de fazer tudo aquilo que tá ao seu alcance. Se vê algo errado, vai lá e resolve — define o representante comercial.
Famoso nas ruas
Ao circular no comércio ou próximo à Praça Getúlio Vargas – onde o curioso fato ocorreu –, Paulo é reconhecido pelos vizinhos.
— Vi a história na televisão — afirma um morador que grita sobre o muro.
— Parabéns por cuidar dos brinquedos — congratula outro.
Exercitando-se no aparelho antes avariado, a costureira Fátima Elias, 64 anos, relembra que há dias não usava aquela bicicleta. Ao elogiar a atitude do morador, aproveita para reclamar da falta de zelo dos parques próximos a sua residência.
— A praça onde eu moro é toda destruída. Eu venho pra cá porque aqui é melhor, e eu também sentia falta desse aparelho. Se todo mundo imitar ele, vamos ter um mundo melhor — definiu, sorrindo, enquanto observa o solidário vizinho.
Ao citar o cuidado com os brinquedos infantis da praça, a psicóloga Eliana Bortolon destaca o esforço em algo que, aparentemente, sequer foi criado para seu uso:
— Evidentemente, ele não é uma criança, mas está preocupado com os demais. Isso é algo que deveria ser comum na sociedade, porque, na prática, precisamos muito um do outro diariamente.
O senso de comunidade contrasta com o que se vê em grande parte da sociedade atual, visivelmente mais individualista, segundo a psicóloga. Eliana complementa a análise ao reforçar outra contribuição ao bem comum: a manutenção do espaço em boas condições agrega também à segurança pública.
— Uma praça toda quebrada não leva ninguém, fica fazia e perigosa. As pessoas perdem a vontade de ir. Toda arrumada, o pessoal vai, toma chimarrão e fica melhor pra todo mundo — avalia.
O trabalho voluntário do gravataiense, contado e replicado, pode ter ainda efeito sobre a vida adulta dos seus netos:
— Boas práticas podem contribuir para eles se tornarem cidadãos com melhores hábitos quando crescerem.
Um sonho: uma Kombi
Há seis anos, a garagem de casa foi adaptada e passou a ser o ganha-pão da família Gonçalves da Silva. Em um ambiente de simplicidade rústica, repleto de cavaletes de ferro, toras e caixotes de madeira, Paulo repara o que diagnostica defeituoso. Com martelos, serra e um esmeril trabalha os metais, ao lado da parede que reforça sua aversão à tecnologia: os números de contato dos clientes são rabiscados em folhas de papel. O analógico serralheiro é generoso em seus negócios e oferta largos descontos “para não deixar ninguém na mão”.
Para os atendimentos, Paulo empurra sobre a calçada um carrinho de supermercado carregado com o material encomendado, ao lado da inseparável caixa de ferramentas. Deixado há 20 anos em frente de sua casa, o veículo adaptado com rodas de bicicleta só deixa de suprir a demanda quando os pedidos são de grande vulto, o que obriga o ferreiro a arcar com custos de um frete terceirizado. O desejo para 2020 é trocar o carrinho por uma kombi, “nem que seja bem velha”, pondera.
Há dois anos, o casal abriu, no mesmo terreno em que vive, um minimercado. Sem prateleiras, um canto do comércio ganha outra utilidade quando o inverno se aproxima, e serve de depósito para roupas quentes, em uma campanha do agasalho organizada a dois. A pequena venda decorada com bandeiras do Brasil ainda tem escassos clientes.
A empreendedora, porém, demonstra confiança na popular crença da “lei do retorno”. Como o homem que auxilia um motorista sem visão em Ensaio Sobre a Cegueira (José Saramago, 1995), minimiza seu ato:
— Hoje por si, amanhã por mim, não sabemos para o que estamos guardados.
Da mesma forma, ela se mostra esperançosa por dias mais afortunados:
— Fazemos tanta coisa boa pros outros, tenho certeza que com o suor do bem, Deus vai nos recompensar — clama, emocionada, ao relembrar que do trabalho de faxineira conseguiu pagar a faculdade do único filho, feito inédito entre os parentes.