Há tempos um criminoso em particular intrigava a polícia às voltas da Usina do Gasômetro. Agia muito rápido, roubava apenas dinheiro vivo e — segundo as poucas ocorrências registradas na 1ª Delegacia de Polícia Civil — ameaçava as suas vítimas com uma faca. Pela descrição física (tinha cabelos descoloridos), os investigadores suspeitavam de um certo morador de rua da região. A Brigada Militar tinha a mesma suspeita, mas, nas diversas vezes que abordara o sujeito, não encontrara nada. Um dia, baseados no horário de uma ocorrência, os investigadores foram às imagens das mais de 30 câmeras que monitoram a região.
— Ali, matamos a charada. Ele havia tirado o cabo de uma faca de serrinha, e guardava sempre na lateral do corpo, rente à perna, depois dos assaltos. Por isso, sempre parecia estar limpo quando era revistado — explica o delegado Paulo César Jardim.
Já sabendo da estratégia, os investigadores procuraram mais gravações. Acompanhando os passos do sujeito de perto, descobriram que os assaltos eram largamente subnotificados à Polícia Civil. Reuniram imagens para um inquérito robusto, e, a partir dele, obtiveram pedido de prisão preventiva da Justiça.
— Estimamos que ele realizasse entre cinco e seis assaltos por dia. Hoje, está no presídio —conta Jardim.
Trata-se de um caso banal, mas um bom exemplo dos pontos fundamentais utilizados pelas autoridades para manter o trecho revitalizado da orla do Guaíba seguro: integração das forças de segurança, bom uso da vigilância eletrônica e resposta forte e imediata às ocorrências que pontualmente ocorram na região.
Inaugurada em junho de 2018 para imediatamente se tornar xodó da Capital, a Orla Moacyr Scliar foi desafiada recentemente com episódios de violência. Na madrugada de 4 de fevereiro, Dalmás Cesar Martins, 34 anos, foi assassinado com um tiro à queima-roupa perto das quadras esportivas. No mesmo dia, à noite, um corpo foi encontrado com mãos e pernas amarradas no Guaíba na altura da Rótula das Cuias. Os casos se somam ao do adolescente Haderson Júnior Martins Floriano, 17 anos, morto com uma garrafada no peito na noite de 29 de setembro, um domingo.
Conforme as autoridades, mesmo esses casos, embora trágicos, trazem ensinamentos na questão da segurança da região.
— É quase impossível prever que uma pessoa será abordada com um tiro na cabeça daquela forma, mas, se acontecer, precisa ocorrer o que ocorreu: os suspeitos foram presos a menos de 200 metros dali — declara o tenente-coronel Luciano Moritz, comandante do 9º Batalhão da Polícia Militar.
Dos três crimes, o caso do corpo encontrado é encarado como o menos preocupante. Pelo avançado estado de decomposição, suspeita-se que ele tenha sido desovado em outro ponto do Guaíba e emergido na Orla. A morte de Haderson, todavia, consternou as autoridades. O que parecia inofensiva aglomeração de jovens, escalou rapidamente para briga generalizada com final trágico. Mesmo que a Guarda Municipal tenha respondido tão logo percebeu a conflito e que as imagens tenham servido, posteriormente, para a captura dos envolvidos, isso não foi o suficiente para salvar a vida do adolescente.
Desde então, Guarda Municipal e Brigada Militar redobraram atenções a possíveis brigas combinadas no local, embora o próprio episódio de setembro tenha feito com que o espaço se tornasse menos visado por criminosos desde então. Além de intensificar o patrulhamento, uma solução tecnológica deve se somar à prevenção. Já está em fase de licitação a aquisição de um software de inteligência capaz de detectar tumultos em multidões por imagem. Nesse episódio, o software possivelmente alertaria os agentes da agitação antes mesmo que a briga se tornasse perceptível aos agentes da Guarda Municipal que vigiavam monitores.
— Esse caso tem particularidades tristes. Quando as viaturas da Guarda se aproximam, os amigos carregam o adolescente para o sentido oposto e o escondem por alguns minutos. Então, um deles percebe a gravidade do ferimento e retorna para pedir socorro aos agentes. Aqueles minutinhos ali de atendimento poderiam ser decisivos para salvá-lo — lamenta Marlo-Hur Toral Vieira, coordenador-geral do Centro Integrado de Comando da Cidade de Porto Alegre (Ceic), de onde a região é monitorada.
Em futuro próximo, espera-se que a possibilidade de tragédias semelhantes sejam percebidas cada vez mais cedo.
Como funciona o Big Brother a céu aberto
Assim que um casal de namorados se desloca à noite em direção ao playground, uma agente da Guarda Municipal passa a prestar a atenção nele. Com alguns cliques, ela muda de câmera e aproxima o zoom até que eles cresçam o suficiente para o seu gosto na tela do computador.
— Vamos ver se vocês vão se comportar —brinca.
A cena ocorre em uma salinha fechada por trás dos vidros, metros à frente dos bares na nova Orla. Ali funciona um posto avançado de monitoramento da Guarda Municipal, onde há uma fileira de monitores mostrando imagens alternadas de 38 câmeras de segurança. É noite, e os sete agentes se revezam entre patrulhamentos, vigilância remota e tarefas mais prosaicas de zeladoria, como guardar uma bicicleta danificada ou um molho de chaves perdido. O local está em comunicação direta com o Ceic, distante três quilômetros dali, no bairro Azenha.
— Não podemos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, mas as câmeras podem —explica o secretário municipal de Segurança, Rafão Oliveira.
A resolução das imagens impressiona. Ajudadas pela boa iluminação da região, ajudam a identificar comportamentos suspeitos antes que os delitos aconteçam. Alguém constantemente recebendo e entregando objetos sorrateiramente, por exemplo, tem grande chance de ser um traficante. Um homem escondido na região dos deques, perto de um grupo feminino, um possível assediador.
— Não é um apreciador do pôr do sol, pode apostar. Eles acham que estão escondidos atrás desses mirantes de madeira, mas é só trocar para a câmera para outro ângulo que flagramos os gestos obscenos — mostra uma das agentes, em um plantão noturno de quarta-feira.
O big brother da Orla vem sendo particularmente útil desde a aprovação da lei que proíbe a ação dos flanelinhas em Porto Alegre. Desde então, a ação deles é mais discreta na região, mas com a ajuda de descrições feitas pelos frequentadores via 156 ou pessoalmente aos guardas, é possível identificá-los por imagens. Outro efeito da presença das câmeras deixa os agentes particularmente aliviados: suicídios nas águas do Guaíba, antes comuns na região, foram praticamente zerados.
Por que fizemos esta matéria?
Por muitas décadas, a orla do Guaíba não era foco de atenção da sociedade e do poder público. A partir da revitalização, concluída em junho de 2018, a região passou a ter alta relevância em termos de ocupação do espaço público não só para quem vive em Porto Alegre, mas para os frequentadores de todo o Estado que vêm conhecer o local.
Quem foi ouvido para a reportagem?
GaúchaZH ouviu representantes de mais de uma linha de opinião a fim de mostrar a importância da Orla: autoridades da segurança — polícias Civil e Militar e Secretaria Municipal da Segurança Pública —, especialistas em ocupação de espaços públicos e frequentadores do local.
Convívio como estratégia de segurança
São 20h30min de quarta-feira e um grupo de jovens está sentado em rodinhas próximo a uma das arquibancadas de concreto da Orla. O anfitrião e aniversariante é Pedro Pessoa, 22 anos, que distribui pedaços de torta aos amigos.
— Para te falar a verdade, segurança nem me passou pela cabeça. Escolhi esse lugar porque faz parte da minha vida mesmo. Viemos curtir o pôr do sol, comer bolo, e mais tarde vamos caminhando até um bar no viaduto da Borges — conta o estudante de Medicina.
Desde a inauguração, há um esforço para manter a Orla tão segura como democrática. Convidativa até altas horas da noite a aniversariantes, esportistas, famílias e adolescentes.
— Você me pergunta em que ponto a Guarda está orientada a abordar um mendigo alcoolizado, por exemplo. A resposta é: a partir do ponto em que alguém reclamar. Porque, senão, a Orla é tanto dele quanto dos demais — declara Marlo-Hur Toral Viera, do Ceic.
Secretário de Segurança, Rafão Oliveira vai na mesma linha, mas com algumas ressalvas:
— A diversidade, o convívio entre diversos tipos de público e classes sociais é muito salutar. Desde que haja limites. Democracia presume limites. Sou livre, mas não posso deitar na rua. Porque aí comprometo o direito de ir e vir do outro.
O limite entre o que é uma reunião de jovens em um domingo à noite e uma potencial briga de garrafas é onde se equilibra a prefeitura. Para especialistas consultados por GaúchaZH, manter diferentes públicos no mesmo espaço público não só é salutar como é estratégico para a segurança dele.
— O direito à cidade presume o convívio entre diferentes. Se você segregar o jovem daquele espaço, ele não só vai se sentir um invasor como agir como um invasor, já que não é o lugar dele. É importante que, até tarde da noite, ele tenha famílias a respeitar e vice-versa. A cidade é feita de encontros — opina Betânia de Moraes Alfonsin, professora da Fundação Escola Superior do Ministério Público e diretora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
Outro aspecto positivo dessa ocupação é a inevitável irradiação para regiões vizinhas, mesmo as ainda não revitalizadas. Professora do departamento de Sociologia da UFRGS e integrante do grupo de pesquisa Violência e Cidadania, Letícia Maria Schabbach observa que regiões como a Casa de Cultura Mario Quintana e o restante da Rua dos Andradas já se beneficiam da redescoberta da Orla pelo simples aumento de trânsito de pessoas nesses espaços.
— Melhor seria que, uma vez que a sensação de segurança melhore, elas também despertem para a dimensão cultural desses espaços. Isso aprimora a urbanização e convida à revitalização — declara a professora.
Para estimular a boa convivência entre diferentes, alguns aspectos urbanísticos da Orla e do Centro Histórico ajudam. Alguns são bem óbvios — como a boa iluminação e acessibilidade — outros nem tanto.
— É interessante a mistura entre prédios históricos e mobiliários novos. Construções de diferentes idades e estados de conservação estimulam uma mistura sócio espacial. Observe o Parque Germânia, por exemplo. Não é porque ele é aberto durante o dia que é frequentado por diferentes públicos. Por quê? Por que é tudo padronizado ali em volta — opina Luciana Marson Fonseca, doutora em urbanismo e diretora da Escola Livre de Arquitetura.
A observação serve de alerta para o futuro da revitalização dos demais trechos. À medida em que trechos de obras públicas se misturem a empreendimentos privados — como o Pontal, por exemplo — ou concedidos à iniciativa privada — como a futura roda gigante, no trecho 2 — corre-se o risco de a Orla se segmentar, ficando cada público com determinado espaço, uns mais "nobres" outros mais populares.
— Em certa medida, isso é inexorável. É a tensão da própria cidade que se reflete ali. Mas é recomendável que o poder público evite "guetificar" qualquer espaço — recomenda Luciana.