Há exatos 365 dias, a população de Porto Alegre chancelava o que viria a ser a principal área de lazer e ponto turístico da capital dos gaúchos. No primeiro fim de semana da Orla Moacyr Scliar, cuja obra de revitalização isolou os porto-alegrenses do Guaíba por quase três anos, milhares de pessoas tomaram o gramado, o passeio, a ciclovia e as arquibancadas do trecho de 1,3 quilômetro entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias.
A reabertura do espaço que catapultou a autoestima dos moradores da Capital também mudou radicalmente a dinâmica do lugar, abrindo possibilidades antes impensáveis, como andar de bicicleta à noite ou tomar uma cerveja à beira do Guaíba em segurança depois que o sol se põe. A popularidade transbordou para a vizinhança.
– Antes a gente abria só à tarde. Hoje abrimos às 10h30min e tem almoço todos os dias. Vem gente de fora, dos Estados Unidos, da Argentina – conta Paula Zaccani, gerente do Boteco do Paulista, em frente à Praça Julio Mesquita.
Há anos palco de um tradicional pagode de domingo, o bar é um dos principais beneficiados pelo fenômeno orla – em abril, passou por uma reforma, aumentou o número de freezers e incluiu mais opções no cardápio para atender melhor ao público crescente. A ampliação do horário de funcionamento ilustra uma das mudanças mais significativas após a revitalização: moradores, turistas e comerciantes passaram a injetar vida em tempo integral na área, que, para além da contemplação do pôr do sol, tornou-se atrativa para a prática de esportes, o turismo e a boemia. No dia em que o quilômetro mais celebrado da Capital completa um ano, GaúchaZH conta como, do amanhecer à noite, a revitalização moldou a nova rotina da orla do Guaíba.
Manhãs em constante movimento
Enquanto boa parte dos porto-alegrenses sequer planeja levantar da cama, a orla Moacyr Scliar já está em movimento. Seja de tênis ou sobre rodas, quem dita o ritmo do começo do dia à beira do Guaíba tem um traço em comum: viu na área revitalizada o lugar ideal para praticar esportes.
Nas primeiras horas da manhã, encontrar alguém parado, seja sentado nos bancos ou arquibancadas ou esparramado pelo gramado que fica abarrotado aos finais de semana, é cena rara – quase todos os entrevistados caminhavam, corriam ou pedalavam quando foram abordados pela reportagem. Encharcado de suor, o administrador Thiago Veiga, 32 anos, começou recentemente a usufruir do local, em que costuma tomar chimarrão aos finais de semana, para se exercitar. Há algumas semanas, passou a revezar as corridas no Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete) com treinos na orla.
– Correr na rua é bem melhor do que correr em círculos. E aqui tem uma vibe diferente, tem o Guaíba – sorri o morador do bairro Menino Deus.
A funcionária pública Silvia Santos, 59 anos, escolheu a orla para as caminhadas matinais. De segunda a sexta-feira, vai a pé da Rua Duque de Caxias, onde mora, até a Usina do Gasômetro, e percorre os passeios de concreto por pelo menos uma hora. O exercício é seu único contato com o espaço, que evita nos horários de maior movimento.
– Antes eu não frequentava, mas agora está maravilhoso. Gosto de vir bem cedo, pelas 7h30min. Mas nunca no fim de semana, porque tem muita gente – conta.
Já o eletricista automotivo Tiago Bandasz, 32 anos, não se intimida com a agitação. Desde que se mudou para a Capital para acompanhar o filho em um tratamento médico, no começo do ano, o camaquense pedala mais de 30 quilômetros três manhãs por semana, sempre passando pela orla. Ficou tão fã do lugar que, nos finais de semana, retorna com a família.
– Sempre quando vem alguém nos visitar trazemos aqui para passar o dia. É o melhor lugar de Porto Alegre – diz.
Tardes de relaxamento, estudo e turismo
O hiato entre as manhãs poliesportivas e o ocaso no Guaíba, o ápice do movimento no local desde antes da revitalização, é preenchido por gente com as mais diferentes motivações.
Deitada em uma canga laranja estendida sob a sombra do mirante Olhos Abertos, a técnica em administração Karina Freitas tirava uma despreocupada soneca por volta das 14h30min de uma terça-feira quente. Moradora do bairro Floresta, costuma ir ao local com a companheira, a filha e a sobrinha para descansar enquanto as crianças brincam ao ar livre. Por ser mais tranquilo que o fim do dia, o horário da tarde tornou-se o preferido da família, que opta pela orla em detrimento de outras praças pela sensação de segurança.
– Antes não tinha um lugar policiado onde desse para ir com as crianças. A gente até vinha, mas íamos embora depois do pôr do sol. Hoje ficamos mais tempo. Está mais iluminado, mais ocupado, com gente de todos os tipos – comemora.
Famílias, casais e turistas estão entre os principais frequentadores vespertinos, ocupando principalmente os pontos de sombra no gramado e à margem do Guaíba, além dos bancos espalhados pelos deques. Contemplar a paisagem, tomar mate e tirar selfies são os programas mais comuns. Mas há quem aproveite a calmaria da tarde – inexistente aos finais de semana – para dedicar-se a atividades que exigem silêncio e concentração.
Moradora da Rua Demétrio Ribeiro, a psicóloga Fernanda Weimann, 26 anos, já tinha o hábito de caminhar até a orla para exercitar-se e tomar sol quando, semanas atrás, resolveu testar o espaço ao ar livre como área de estudos. Escolheu a arquibancada para acomodar-se enquanto lia um livro preparatório para concursos públicos.
– Sinto falta de mais árvores, mas o resto ficou muito bom – diz.
Se para os moradores da região central a orla é usada como quintal, para quem vem de outras partes da Capital, o espaço está mais para ponto turístico. Lendo a placa do selfie point – onde fica um espelho com o nome da cidade –, o estatístico Pedro Zuanazzi, 35 anos, denunciava a curiosidade por cada ponto do local, que visitava pela primeira vez. Aproveitou as férias para pedalar do bairro Cristal, onde mora, até a área revitalizada:
– Tentei vir no segundo fim de semana, mas estava um formigueiro e acabei desistindo. Demorou para sair do papel, mas ficou muito bonito. Nos últimos 20 anos, é onde a cidade mais evoluiu. Andou para frente.
Depois do pôr do sol, happy hour
Se até um ano atrás alguém questionasse o advogado Claudio Francesconi, 45 anos, sobre o melhor lugar para um happy hour depois de uma audiência no Foro Central, a orla sequer figuraria entre as possibilidades. Por volta das 18h de quarta-feira, sob uma temperatura de menos de 10°C à beira do Guaíba, estava claro que o jogo virou. De camisa, sobretudo e gravata, degustava uma cerveja sentado a uma mesa externa de um dos bares do novo espaço.
– É o tipo de coisa que só vendo para acreditar. Gosto de viajar para outros lugares, outras capitais, e esse daqui não perde para nenhum. Ficou de primeira – conta Francesconi, que agora nutre expectativas pela revitalização do trecho 3, previsto para o ano que vem.
O aproveitamento noturno é talvez um dos principais diferenciais pós-revitalização da orla. No antigo espaço, que tinha poucos atrativos, pontos de escuridão e segurança precária, o pôr do sol era a deixa para voltar para casa. Com farta iluminação, quatro bares e um restaurante panorâmico, passou a reter o público também à noite. Músico de Córdoba, na Argentina, Cesar Aguero, 36 anos, virou atração noturna do Sheik Burguer, quase que por acaso. Ele passeava pelo local no fim de semana quando viu uma banda tocando no bar e pediu para dar uma canja. Tocou por quase três horas.
– Eu já tinha tocado em Porto Alegre outras vezes, mas esse lugar é diferente. Me parece que está conectado com as pessoas daqui, que sempre estão com um sorriso no rosto – diz.
Atrações musicais entraram na rotina da nova orla, que agora conta com apresentações quase que diariamente. A sensação de segurança trazida pela melhora estrutural, pela presença da Guarda Municipal e pelo movimento quase constante também tornou o lugar atraente para eventos dos mais diversos – alguns deles um tanto conturbados –, que por vezes se estendem madrugada adentro. Moradores da Rua Riachuelo, a designer de produto Julia Henkin e o publicitário Evandro Zucatti são entusiastas da ocupação em tempo integral do espaço, que passaram a frequentar quase todas as noites.
– Antes não tinha atrativo nenhum. Agora às vezes a gente ouve uma música de casa, vem aqui ver e tem um evento rolando. A mudança trouxe uma coisa que Porto Alegre não tinha, que é qualidade de vida – diz Evandro.