
Prestes a ser sancionado pela prefeitura de Porto Alegre, o projeto de lei que proíbe a atividade dos flanelinhas na Capital tem levado guardadores de carro a procurar nova ocupação. A proposta foi aprovada na Câmara Municipal em 18 de novembro, por 19 votos a 14.
No dia seguinte, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) iniciou o cadastro dos guardadores de veículos com o objetivo de encaminhá-los para reinserção no mercado de trabalho. Em uma semana, 104 pessoas — o que equivale a cerca de 10% dos guardadores da cidade — fizeram o registro na fundação.
— Se conhecermos a realidade das pessoas, poderemos pensar em como contemplá-las e até saber que cursos são necessários para estarem aptas ao mercado — afirma a gerente regional da Fasc, Neiva Chaves, responsável pela equipe de 10 profissionais que trabalha nas abordagens nas ruas.
Na manhã da última quinta-feira (5), Antônio do Couto Leopoldo, 66 anos, saiu de casa, no bairro Humaitá, e foi até o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), que fica no bairro Menino Deus, à procura de uma oportunidade.
— Só com aposentadoria não dá para sobreviver. Consigo uns R$ 200 por jogo (de futebol, na Arena, trabalhando como guardador de carro), e, se for proibido, preciso de outro emprego — desabafou.
Do total de cadastrados até o momento, 90% apresentaram endereço fixo. Sete em cada 10 vivem na Capital, e os demais em municípios vizinhos. O levantamento também apontou que a maioria dos cadastrados mora nos bairros Santa Tereza, na Zona Sul, e na Lomba do Pinheiro, zona leste de Porto Alegre.
O projeto de lei ainda não saiu do Legislativo de Porto Alegre. A presidente da Câmara de Vereadores, Mônica Leal (PP), explicou que o texto "está na redação final", mas garantiu que deve ser encaminhado ao prefeito Nelson Marchezan ainda nesta semana.
— Temos leis para todos os lados, mas não fiscalização. Esse projeto puniu os guardadores que se qualificaram e passaram por cursos. Quero ver a prefeitura fiscalizar todos. Sou contra os achacadores, mas não tem sentido fazer isso com os que cumpriram todas as etapas e têm as licenças — avalia a parlamentar.
A Capital tem entre mil e 1,2 mil guardadores de carro, de acordo com a Secretaria Municipal de Segurança Pública. Destes, cem são sindicalizados e passaram pela qualificação citada pela vereadora entre os anos de 2012 e 2014.
Patrocinados pelo Executivo, os cursos que credenciaram os guardadores, na época, ensinaram noções de primeiros socorros e trabalharam temas como relações humanas, etiqueta e boas maneiras, legislação de trânsito e informações turísticas de Porto Alegre.
Grupo já fez entrevistas
Funcionários da Guarda Municipal e do Sine de Porto Alegre atuam com profissionais da Fasc para a qualificação dos guardadores. De acordo com o diretor do Sine, Nelson Beron, a ideia é encaminhar os flanelinhas para atividades as quais eles já tenham familiaridade:
— Questionamos o que faziam antes de serem guardadores, se têm qualificação e estudo.
Ainda segundo Beron, foram realizadas 17 entrevistas em cinco diferentes empresas, com guardadores que integram o Sindicato dos Guardadores de Automóveis de Porto Alegre (SGAPA). Os cursos oferecidos para eles deverão ter foco na área de serviços, mas também há qualificações na construção civil, logistica, gastronomia e comércio, entre outros.
Secretário diz que atividade foi "tomada por facções criminosas"
O Secretário de Segurança de Porto Alegre, Rafão Oliveira, afirma que, mesmo sem a lei estar em vigor, já há incremento na fiscalização dos guardadores de carro nos pontos mais movimentados da Capital, como a orla do Guaíba.
— Essa atividade não é mais aceita em Porto Alegre. Foi tomada por facções criminosas, que estão se apropriando das pequenas atividades. Se alguém vir de fora para trabalhar de guardador, não vai conseguir, porque as ruas tem dono — complementa.
Quem for flagrado atuando como flanelinha, após a nova lei entrar em vigor, pagará multa de R$ 300 e o dobro do valor caso seja reincidente, explicou o titular da Segurança. O trabalhador poderá ser enquadrado nos crimes de estelionato, coação, extorsão e exercício ilegal da profissão, ainda de acordo com Rafão.
— Vai levar um tempo para colocar ela em prática. A lei das carroças e do fumo zero levou dois anos. Mas, como tem apelo popular, essa deve ser mais rápida — diz.
Lei divide opiniões
O presidente do Sindicato dos Guardadores de Automóveis de Porto Alegre (Sgapa), Júlio Moura, classifica o projeto da prefeitura como "desumano".
— Os vereadores não pensaram nas famílias. Como vou perder um registro que já foi adquirido no passado? Eu fiz o meu dever e estou perdendo meu direito. Bastava identificar onde havia problema. Toda categoria tem uma maçã podre no meio, mas tem senhores de 60 anos que só sabem fazer isso na vida — reclama o sindicalista.
A iniciativa que propõe qualificação profissional também é criticada pelo representante da categoria:
— Todo dia tem gente na fila procurando emprego. Tu achas que vão passar nós na frente dos outros? Precisamos de uma alternativa agora. Se proíbe hoje, amanhã vamos nos esconder como bandidos, como ladrões?
Entre os condutores, as opiniões se dividem. O representante comercial Mauro Silva concorda com a proibição da atividade:
— Tem guardadores bons, mas os ruins pagam.
A motorista por transporte de aplicativo Fabiana da Silva Vieira, 37 anos, não se importa com os "colegas" de rua:
— Para mim é tranquilo eles ficarem na rua, afinal todo mundo tem que trabalhar.

Na Azenha, guardador varre calçadas e fica com chave dos carros
Com uma vassoura nas mãos e diversos molhos de chave nos bolsos, Silvio Agenor Neves, 48 anos, é presença constante na Rua 20 de Setembro, no bairro Azenha. Desde os 10 anos, ele vive no local, primeiro em uma apartamento cedido por um antigo morador e hoje em um "quartinho" de um imóvel comercial.
— Qualquer casa em que tu bater aqui o pessoal vai dizer pra ti quem eu sou — afirma Neves, enquanto esfrega o estofamento de um Volkswagen Golf.
O alarme do veículo que recebe a limpeza foi deixado com ele pelo proprietário do carro. O serviço rende a Neves R$ 20 ao final do dia. A água é captada de outro condomínio, local onde o guardador também tem livre acesso. Os pagamentos variam entre R$ 10 a R$ 50, por semana ou por mês. Há quem reclama quando há outro flanelinha no local.
— Se não é ele aqui, vira uma bagunça essa rua — avalia o transportador Marlon Souza, 29 anos.
Para o guardador, apenas os achacadores deveriam ser retirados das ruas.
— A prefeitura quer tirar a gente da rua. Tu acha que vai ter emprego pra todo mundo? —questiona, complementando que toda contribuição é espontânea, determinada por quem contrata seu serviço.
Há três décadas, Edevaldo Sacramento Moraes, 55 anos, se desloca todas as tardes de Viamão à orla do Guaíba.
— Aqui é tudo espontâneo, cada um dá o que acha que eu mereço — justifica o flanelinha, criticando quem define o valor aos motoristas.
Segundo o experiente guardador, a notícia da aprovação do projeto que proíbe a atividade já influencia o ponto mais visitado da cidade aos finais de semana.
— Reduziu bastante (o trabalho). Eu também, se soubesse ler e escrever, queria estar em um emprego fixo — relata o pai de seis filhos, que só sabe desenhar sua assinatura no papel.