De respostas bem formuladas e fala mansa, David Duarte, 34 anos, discorre sobre seu passado e sonha com o futuro. Vivendo nas ruas de Porto Alegre há 11 anos, o novo-hamburguense se define como "um pensador".
— Gosto do que me ajuda a refletir: Dante (Alighieri), (Jack) Kerouac e o meu preferido, esse aqui — conta, apontando para o colo, onde apoia a biografia do filósofo russo Fiódor Dostoiévski.
O leitor contumaz carrega, apoiado nas alças da cadeira de rodas, uma mochila com as obras. Nascido com espinha bífida — problema congênito que compromete a formação da medula —, nunca teve o movimento das pernas, que pouco se desenvolveram. A deficiência, porém, não é encarada como o maior desafio do sem-teto:
— As leis ajudam muito os deficientes, e as pessoas também. O problema é que na rua a gente não tem ninguém. O maior amigo do homem é a sombra. E mesmo assim tem que desconfiar.
David vive sob o antigo abrigo dos bondes, no Largo Glênio Peres, local tido por ele como seguro e com grande oferta de auxílio por parte dos comerciantes. É no Centro que ele vende balas, "quando não está com preguiça", admite. Afirmando ter enfrentado preconceito em todas entrevistas de emprego, decidiu focar em escrever.
— Sempre tive a mente inquieta. Quero ganhar a vida com meus escritos. Aí pensei: "Sobre o que vou escrever?" — questiona, de forma retórica. E a resposta vem na sequência:
— Escrever sobre a vida. Porque na rua eu tenho a experiência de viver. De sobreviver.
A biografia de Dostoiévski foi comprada em uma livraria da Rua dos Andradas, em frente à Praça da Alfândega. David diz ser formado pelas leituras que lhe interessam. Os livros são o que desviam sua mente da dura realidade enfrentada.
— Eu estou na rua, mas a minha mente não. A rua não me molda, eu moldo a rua. Por isso eu leio — explica, enquanto procura uma passagem da obra.
O trecho escolhido a ser recitado ao vivo na Rádio Gaúcha, na manhã desta sexta-feira (18), fala sobre a imortalidade.
— É essencial e inevitável ter a convicção da imortalidade da alma humana. Com a falta de fé em sua alma, e a imortalidade dessa alma, a existência do homem é contranatura, inconcebível e intolerável — replica, ao ler a publicação.
O aspirante a escritor diz ter passado por cinco ou seis lares adotivos na adolescência, onde teve até "certo luxo", quando "tinha tudo na mão com facilidade", como relembrou. Devido a dificuldades de adaptação, acabou deixando todas.
— O que eu não tinha era vínculo de família. Ninguém chega e vira família de um dia pro outro. Mas eu não culpo ninguém por estar onde estou. Demorei a amadurecer. Uma hora o cara aceita o que Deus deu. Ano que vem vai ser o da virada — finaliza, motivado, enquanto guarda o resumo da vida de seu autor favorito ao lado da Bíblia Sagrada.