Pequenos fragmentos da história de Porto Alegre, preservados graças ao esforço de um grupo de amigos, tornaram-se públicos depois de 85 anos.
Trechos de uma gravação em filme, posteriormente digitalizados e agora divulgados via rede social, mostram cenas inéditas da Capital no distante ano de 1934. O vídeo retrata o bairro Teresópolis, o Centro e uma rara preciosidade: um dos únicos registros conhecidos em filme da passagem do célebre zepelim sobre o céu da cidade.
Segundo o responsável pelo material, o pesquisador cultural Jadir Anchieta, o documento histórico foi gravado por João Bastos de Aguiar, um ex-prefeito do município gaúcho de São Francisco de Assis, e ao longo das décadas seguintes passou de mão em mão sem nunca ter chegado ao conhecimento público — até este momento.
— O filme ficou sob os cuidados de um sobrinho do ex-prefeito. Esse sobrinho faleceu há mais de uma década, então ficou sob a guarda de um amigo com a mesma afinidade pela preservação da história. Ele também faleceu, então fui atrás desse filme e resolvi divulgá-lo para garantir que nunca se perdesse — conta Anchieta.
Professor de Cinema da PUCRS e pesquisador sobre a história do cinema no Rio Grande do Sul, Glênio Póvoas confirma que as imagens têm relevância histórica.
— Não é a filmagem mais antiga de Porto Alegre, já que existem outros registros como a inauguração do monumento ao General Osório na Praça da Alfândega um ano antes, por exemplo, mas é uma das mais antigas. Estima-se que apenas 10% da filmografia do período silencioso (ainda sem som) tenha sido preservada, o que valoriza qualquer coisa dessa época — analisa Póvoas.
Anchieta conta que o original foi registrado em filme, posteriormente convertido para fita VHS, depois DVD e, finalmente, disponibilizado na internet para nunca mais se perder.
— Quando o Misael Ribeiro Correia (anterior responsável pelo material) faleceu, neste ano, lembrei do vídeo que, até onde eu sei, seria o único registro da passagem do zepelim sobre Porto Alegre em filme. Nosso pequeno grupo de amigos costumava fazer sessões para assistir a essas imagens antigas — conta
O trecho que mostra Porto Alegre tem cerca de seis minutos, mas o zepelim aparece apenas em duas cenas de pouco mais de dois segundos ao passar pela área central da cidade. A câmera foca ainda pontos como o Cais, os atuais prédios do Memorial e do Museu de Arte do Rio Grande do Sul e a Praça Otávio Rocha. Acredita-se que o ex-prefeito tenha viajado até a Capital justamente para acompanhar o voo do dirigível.
— Foi um evento. As pessoas subiam nos terraços e telhados para assistir ao zepelim. Existem muitas fotos desse momento, mas desconhecia registro em filme — afirma o fotógrafo e colunista responsável pela seção Almanaque Gaúcho em GaúchaZH, Ricardo Chaves, o Kadão.
Glênio Póvoas conta que uma antiga produtora cinematográfica, a Leopoldis Som, gravou o passeio pelo dirigível sobre Porto Alegre, mas esse acervo se perdeu.
— Pode haver outra filmagem como essa que surgiu agora, mas não é de conhecimento público — afirma o especialista.
O material começa mostrando imagens no bairro Teresópolis, então um arrabalde com jeito de zona rural, por onde o cineasta improvisado também passou na mesma viagem. Parte dos registros mostra cenas familiares como brincadeiras com crianças e animais.
— Aparecem imagens de uma chácara que se chamava Dona Maria Luiza, a atual praça Guia Lopes e a Igreja Nossa Senhora da Saúde, que sofreu modificações ao longo do tempo. É um registro muito interessante — analisa o pesquisador sobre a história do bairro Ricardo Eckert.
Zepelim passou uma única vez sobre a Capital
A passagem do dirigível sobre Porto Alegre foi um evento único. Durante a década de 1930, o Graf Zeppelin realizava uma rota fixa entre o Brasil e a Alemanha, mas, em 1934, adotou um percurso alternativo que incluiu a Capital, passou por Montevidéu e chegou até Buenos Aires.
— O zepelim era também uma demonstração da tecnologia nazista, em ascensão na Alemanha — afirma o fotógrafo Ricardo Chaves.
Autor de um artigo que relembra o evento que mobilizou a cidade, o professor de Literatura Jorge Piqué acredita que o sobrevoo tenha despertado tanta atenção porque era uma tecnologia muito inovadora para a época. Hoje, porém, muitas pessoas nem sequer sabem desse episódio.
— Temos um problema grande de memória, muitas vezes sabemos mais sobre o que ocorreu fora do país do que aqui. Por isso, imagens que recuperem parte dessa história são muito importantes — afirma Piqué.
O destino dos dirigíveis acabou selado em 1937, quando uma tragédia envolvendo a explosão do Hindenburg causou a morte de 36 pessoas. Os zepelins deixaram de ser utilizados, e permanecem voando somente em registros como o recém-descoberto filme de 1934 em Porto Alegre.