Por volta das 11h de domingo, um burburinho ininteligível reverberava nas dependências do número 1.177 da Avenida Doutor Carlos Barbosa, no bairro Medianeira, na Capital. Cerca de 30 pessoas liam, em voz alta, um trecho da Bíblia projetado na parede. A atividade soaria em coro não fosse um detalhe: enquanto parte delas recitava em português, simultaneamente, outras pronunciavam tudo em mandarim.
A inusitada sobreposição linguística é naturalizada na Igreja Presbiteriana Chinesa de Porto Alegre. Fundada no começo da década de 1980, a instituição calvinista — com raízes na Reforma Protestante — promove, todos os domingos, cultos bilíngues em sua sede.
A cerimônia, com tradução simultânea, estende-se por quase duas horas. Não é para menos: toda frase dita em português no altar do pequeno templo, com espaço para acomodar algumas dezenas de pessoas, é repetida em mandarim — o púlpito conta com dois microfones, e todos os atos ocorrem em duplas. Durante os cantos e leituras coletivas da Bíblia, o texto é projetado nos dois idiomas na parede sobre o altar, e os fiéis são livres para participar naquele que preferirem. O resultado, nessas horas, é uma miscelânea indecifrável.
— Deus entende todos os idiomas — afirma, convicto, Kuo Wan Feng, 71 anos.
O chinês, que no Brasil apresenta-se como Marcos, fala com Deus em taiwanês, um dialeto da região de onde veio. Membro mais antigo da comunidade presbiteriana chinesa na Capital, ele conta que a igreja foi iniciada por sua mãe em 1983, quatro anos depois de sua família, natural de Taichung, trocar São Paulo por Porto Alegre.
As primeiras reuniões, quinzenais, ocorriam dentro de casa e eram seguidas de um banquete, "para estimular os amigos a voltarem", segundo recorda. A celebração era feita por um pastor chinês que vinha de Mogi das Cruzes, em São Paulo, somente para o evento — em caso de impossibilidade, mandava uma fita cassete com o culto gravado.
A comunidade, à época exclusivamente composta por chineses e seus descendentes, começou a crescer, e a residência tornou-se pequena para os cultos. Em 1987, com dinheiro arrecadado entre os cerca de 30 fiéis, o grupo adquiriu a casa de dois pavimentos na Rua Doutor Carlos Barbosa.
O imóvel residencial teve de ser reformado para virar igreja. Quase todo o "miolo" foi retirado para abrir espaço para o altar e abrigar os bancos e cadeiras da sala principal. Nos fundos, uma área com churrasqueira passou a ser utilizada como uma espécie de salão paroquial, abrigando os banquetes— agora realizados mensalmente e com a colaboração de todos. Um cômodo de proporções menores foi reservado às crianças — que durante o culto participam de uma atividade paralela. Bíblias e hinários (livros com canções) em chinês foram encomendados de São Paulo.
Pastor brasileiro
Com o passar do tempo, as necessidades se transformaram. Parte dos membros antigos faleceu, e as novas gerações, nascidas no Brasil, já não se identificavam com os cultos em mandarim, o que as afastava da igreja. Foi quando tiveram início as celebrações bilíngues que culminaram, cerca de três anos atrás, na escolha de um pastor brasileiro para comandar a cerimônia.
Natural de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos, Jurandir da Silva foi apresentado à igreja por uma amiga. Não por acaso. Entre 1993 e 2005, morou na China, onde atuou como missionário, à época, da Igreja Batista. Começou a frequentar o local em 2008, mas só virou pastor oficialmente em 2016, após uma eleição realizada entre os membros da comunidade.
— Eles dão muito valor à cultura, e eu tive bastante contato com ela, por ter morado lá. Tem muitas diferenças. Algumas comidas, por exemplo, eu não gosto, mas como para me integrar. Hoje é uma comunidade heterogênea — sorri o pastor, que celebra o culto em português ao lado do filho, Calebe, que traduz suas falas para o mandarim.
Atualmente, a igreja conta com cerca de 40 frequentadores, entre chineses, descendentes e brasileiros — parte deles convidados por membros mais antigos. O culto é não só um intercâmbio cultural, mas também um encontro geracional. Há cantos tradicionais, embalados ao piano por uma senhora chinesa, e músicas atualizadas — em geral versões brasileiras de canções religiosas em inglês — executadas por uma banda mais jovem, com violão, bateria e baixo.
Os chineses estão entre os membros mais velhos, e cada vez menos numerosos. Para Kuo Wan Feng, o "abrasileiramento" da igreja fundada por sua mãe é um caminho natural e inevitável. Mas não se ressente, pelo contrário. Vê com bons olhos a adesão de pessoas de diferentes culturas:
— Penso que, daqui a 10 ou 15 anos, vai virar uma igreja brasileira. Mas eu não vejo problema. O mais importante é manter as pessoas, principalmente as crianças, no caminho certo — diz.
A Igreja Presbiteriana
O presbiterianismo refere-se às igrejas cristãs protestantes que aderem à tradição teológica reformada (nesse caso, o calvinismo) e cuja organização é caracterizada pela existência uma assembleia em que várias pessoas participam da tomada de decisões.
No Brasil, a primeira igreja foi fundada em 1862, no Rio de Janeiro, pelo missionário norte-americano Ashbel Green Simonton. Em 2016, tinha aproximadamente 649 mil membros distribuídos em mais de 5 mil igrejas locais e congregações em todo o país.
Os Estados de Rondônia e Espírito Santo são os que apresentam o maior percentual de presbiterianos autodeclarados, cerca de 1,2% da população. Já Rio Grande do Sul e Piauí são os Estados com o menor percentual, com menos de 0,1% da população identificando-se como presbiterana.