Em um vídeo gravado dias depois de anunciar o fechamento do Mariu's, no bairro Bom Fim, Mário Fernandes, 97 anos, ensinou a receita de um dos pratos que fez a fama de seu bar, inaugurado em 1975. Dispensou a falsa modéstia:
— As mãos é que são perfeitas. Elas que fazem o bolinho de bacalhau bom. Eu dei a receita a muita gente, mas dizem que nunca fica igual — contou, sorridente.
Às 3h15min desta quarta-feira, depois de mais de 40 anos e, nas suas contas, centenas de milhares de bolinhos produzidos, o produtor da inigualável iguaria descansou em definitivo. Internado desde domingo na Santa Casa de Misericórdia, ele teve complicações em decorrência de uma infecção urinária e não resistiu.
— Ele gostava de estar no restaurante, receber as pessoas e conversar. Acredito que isso (o fechamento) contribuiu um pouco. Era uma pessoa voltada para os outros, para o próximo, nunca para ele — recorda a filha Lila Fernandes de Matos.
O fechamento do bar que levava seu nome foi motivado pelas primeiras limitações impostas pela idade avançada. Embora ainda estivesse lúcido e cultivasse paixão pelo trabalho, seu Mário já não tinha energia para produzir os cerca de 500 bolinhos de bacalhau mensais vendidos no local. Encerrou os trabalhos de forma discreta no começo de maio.
Desde o anúncio do encerramento das atividades, postado pela família no Facebook, a rotina do imigrante português era marcada pelo sossego. Segundo a filha, ele fazia fisioterapia, alimentava-se bem e em nenhum momento abriu mão do "vinhozinho" que costumava tomar diariamente. No último mês, no entanto, sua saúde ficou mais debilitada, e ele começou a ter dificuldades para caminhar e enxergar.
Em maio, seu Mário recebeu a reportagem de GaúchaZH e compartilhou a receita do bolinho de bacalhau (veja no vídeo abaixo).
De Portugal para o Brasil
Nascido no Distrito de Aveiro, Mário veio ao Brasil na década de 1940 a bordo de um navio brasileiro. Trabalhou entregando pão, e chegou a ter uma padaria no ponto onde mais tarde funcionaria o Mariu's. Assava pão em forno a lenha para os hospitais (Getúlio Vargas e Santa Casa, por exemplo) e para a própria UFRGS. Tinha um restaurante na Avenida Cristóvão Colombo, o Tejo, quando, em 1975, resolveu abrir o bar no ponto da Osvaldo Aranha.
Nos anos 1970, com bares como Alaska e Acapulco, o Mariu's era um dos pontos que lotava na chamada Esquina Maldita (Osvaldo Aranha com Sarmento Leite). Ali, estudantes, intelectuais, artistas e afins se reuniam para falar principalmente de política e filosofar sobre a vida. Último remanescente da época, o bar do português foi batizado com o nome do dono depois de uma enquete entre os clientes.
— Esse bar foi o caçula. No começo não tinha nenhuma placa na frente, era um bar sem nome. Aí o Mário fez uma votação com os clientes e ganhou esse. Era um personagem importante da cidade — diz o jornalista Paulo César Teixeira, autor do livro Esquina Maldita.
Segundo o jornalista, o Mariu's tinha perfil mais conservador do que os bares do entorno, mas, aos poucos, consolidou sua clientela na região. O carro-chefe da casa era o bauru português, feito com pão d'água, bife, tomate, alface, presunto, queijo, cebola frita, ovo e maionese da casa. Além do bolinho de bacalhau, é claro. Mário, que trouxe a receita de Portugal, aprendeu a prepará-lo com um oficial de guerra quando serviu ao Exército, na década de 1940. Descobriram seus talentos na cozinha e, em vez de ir para o fronte, passou a cozinhar para os comandantes. Até o fim do bar, ele mesmo fazia a massa, com pouca batata e um toque especial de pimenta.
Mário deixa os filhos Lila e Armando, quatro netos e dois bisnetos. O sepultamento está marcado para as 17h30min, no Cemitério São Miguel e Almas.