Quem entra no prédio de cor verde localizado no complexo da Aldeia da Fraternidade, no bairro Tristeza, zona sul de Porto Alegre, já ouve os primeiros acordes: sons de flautas, violões e violinos e de crianças cantando em coro tomam conta do espaço. O local abriga o projeto Educando com Arte, que, desde 2015, atende crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade no turno inverso ao da escola.
Durante alguns dias de fevereiro de 2017, no entanto, o terreno, acostumado a abrigar diariamente diferentes melodias, ficou silencioso. Na madrugada de 15 de fevereiro daquele ano, criminosos entraram no antigo prédio onde funcionava o projeto social e levaram quase todos os cerca 30 instrumentos musicais, que possibilitavam o atendimento de 120 crianças e adolescentes. O prejuízo estimado foi de cerca de R$ 30 mil.
— A gente vinha para a aula, mas não tinha instrumento. Ficamos um tempo sem ter aula prática. Daí era aula teórica, oficina de criação, mas sem tocar — lembra Bruno Torres dos Santos, 13 anos, aprendiz de flauta doce.
Os alunos chegaram a tocar, de forma simbólica, uma orquestra sem som e sem instrumentos, em protesto pelo crime que impactou a rotina de aprendizado. Poucos dias após o furto, a comunidade sentiu o peso da mobilização de moradores da Capital, especialmente da zona sul: centenas de instrumentos foram doados ao Educando com Arte, como flautas, violões, teclados e pandeiros. O maestro Luiz André da Silva, 48, idealizador e fundador do projeto, conta que o grande número de doações emocionou alunos e professores:
— Em função de a mídia ter levado isso a conhecimento do público, as pessoas se mobilizaram. Poxa, quem é que rouba os instrumentos de um projeto social? Já tínhamos uma merreca de instrumentos para atender as crianças. Quem é que faz isso? Isso é chocante. Tu estás atendendo as crianças que não têm grana para comprar um instrumento musical, tu tens aqueles (poucos) instrumentos e divide entre eles ainda. Isso comoveu muita gente. Naquela semana mesmo, nossa! Começaram a chegar muitos instrumentos, muitos, muitos — lembra o maestro.
Dois anos e cinco meses depois, o projeto mostra sinais de que conseguiu se reerguer. O atendimento, que antes beneficiava em média 120 crianças e adolescentes, hoje é oferecido a 315 alunos, divididos em 17 oficinas – o que significa que o número de beneficiados aumentou 162%. Os estudantes atendidos com o ensino musical são tanto os beneficiados pela Aldeia da Fraternidade quanto moradores do entorno.
Após as doações e eventuais compras ao longo dos últimos meses, o projeto conta, hoje, com cerca de 450 instrumentos musicais. A maioria dos novos instrumentos é básica, e o projeto segue aceitando o envio dos mais sofisticados, como clarinete, oboé, fagote, trombone, trompete, saxofone e flauta transversal. Mesmo assim, o alto número de instrumentos permite beneficiar um número ainda maior de alunos:
— A gente tem capacidade para atender, nos dois turnos, 900 crianças. Como a gente recebeu muitos instrumentos, eu posso abrir mais vagas. Eu tenho os profissionais. O projeto só acontece porque eles existem. Não adianta eu ter os instrumentos e as crianças, porque os professores é que fazem acontecer — relata o coordenador, que busca parcerias para fazer pagamentos esporádicos aos profissionais.
Aprendizado além da música
Entre os alunos atendidos, os que mais se destacam são encaminhados para a Orquestra Educando com Arte — que voltou aos palcos em junho de 2017 depois do furto dos instrumentos. A orquestra faz apresentações em eventos como convidada; a única exigência dos coordenadores é o transporte e o lanche para os pequenos músicos.
Eduarda Caetano, 15 anos, estudante do 1º ano do Ensino Médio, é um dos destaques no violino. A menina está no terceiro ano na aula de música e vai às aulas duas vezes por semana — uma para ensino teórico e uma para ensino prático. O violino vai com ela para casa para potencializar o aprendizado:
— Eu comecei na prática, depois fui para a teoria. Quando eu quero aprender uma música, primeiro tento em casa. Se não consigo, trago para o "sor" tentar me ajudar. Mas gosto de ensaiar sozinha.
Há mais de um ano e meio, Eduarda se apresenta com a orquestra. No dia em que a repórter de GaúchaZH acompanhou sua aula prática, a menina executou diversas músicas, entre elas as conhecidas "Asa Branca" e "Brilha, brilha, estrelinha". Questionada sobre o seu sonho, ela fala do futuro e relembra seus primeiros dias no palco:
— No começo dá aquele nervosismo de errar uma nota ou coisa assim, mas depois tu "pega o jeito" de lidar com isso. Tenho vontade de fazer uma faculdade de Música, um bacharelado, e futuramente trabalhar com isso também.
O professor, Luciano dos Reis, recorda a trajetória da menina:
— A Duda está se destacando bastante, acima da média. Ela nos conheceu em uma audição que fizemos na escola dela, gostou e veio direto para o violino. Está a milhão. É legal e ao mesmo tempo emocionante tu ver a realidade de cada um, porque são muitos alunos com realidades totalmente diferentes. São muitos talentos — emociona-se.
Mesmo com pouca idade, Brenda Regina da Cunha Araújo, 10 anos, também se destaca na sua área. A estudante do 5º ano começou no projeto em 2018 e já está participando da orquestra. Depois de passar por flauta, violino e violão, encontrou o instrumento pelo qual se apaixonou: o violoncelo.
— Eu quis testar a aula de violoncelo. Daí fui indo, fui gostando mais e mais, fui estudando e entrei na orquestra. Meu sonho é ser violoncelista e tocar na orquestra de Gramado. Lá é tudo mais colorido, mais legal, e eu queria conhecer Gramado — projeta.
Apesar de parte dos alunos sonhar com a carreira nos palcos, os professores procuram passar ensinamentos não só de teoria ou prática musical, mas que os ajudem em outras atividades e na vida em sociedade. Josué Oliveira, 28, que dá aulas de percussão, é ex-aluno de projeto social — seu professor foi Luiz André, o mesmo maestro que fundou o Educando com Arte.
Após passar pelo projeto Semear, na zona norte da Capital, Josué fez Licenciatura em Música, no IPA, e Bacharelado em Música Popular, na UFRGS, além de duas pós-graduações na área de Pedagogia. A lembrança dos dias como aluno é inspiração para os dias como professor:
— Foi ali que eu peguei o gosto pela música. A gente que é da comunidade mais pobre não tem muitas opções na vida. Eu me vejo um pouco nas crianças. A gente procura que elas tenham um futuro diferente do que poderia ser. A gente sempre torce para que seja musicista, mas, se não for, a gente entende. A gente quer que ele (o aluno) seja um cidadão de bem, que o que buscar busque com garra, com força de vontade. Além da música, a gente tenta passar algo a mais para a vida.
O maestro Luiz André da Silva lembra que, além das aulas com os instrumentos, os professores voluntários procuram trabalhar questões como concentração, trabalho em grupo e respeito ao colega e ao professor. O resultado é um processo de ensino e aprendizado com união e a certeza de que a música seguirá como companheira:
— Independente de ele seguir como músico ou não, a música sempre vai estar com ele. Sempre vai fazer parte dele.