Formando uma meia-lua em torno de um único ponto do gramado, o grupo de 10 alunos e um professor observa atentamente os movimentos de quem é convidado a se aproximar da área indicada. O silêncio provocado pela concentração só é quebrado quando chega a vez de Pitoco. Aos oito anos, Alessandro Martins ganhou o apelido por ser o mais jovem de sua turma de pequenos golfistas da Escola de Golfe Boa Bola, em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. Depois de alguns “vai, Pitoco!”, respondidos com um sorriso rápido, o menino volta a focar na ação. Ajeita a bola sobre o pino, afasta as pernas ligeiramente, curva os joelhos de leve, olha com atenção para o taco antes de quase encostá-lo na bolinha, gira o quadril para trás e, enfim, dá a tacada. A bola voa. Não entra, mas fica ao lado do buraco que, naquele instante, constitui o seu objetivo. Ouvem-se aplausos e elogios entre os colegas mais experientes e admiradores. Apesar da idade e da pouca altura, menos de 1m50cm, o guri já lança bolas com precisão e velocidade admiradas pelos treinadores. Há quase dois anos no projeto, ele deu as primeiras tacadas ainda nas ruas que circundam o Clube Campestre, no bairro Armour — ele e boa parte das crianças atendidas na escola.
Tradição há mais de um século na região, trazida pelos norte-americanos que instalaram um antigo frigorífico na comunidade, o golfe disputa com o futebol a atenção de quem vive ao lado do clube, que não tem muros ou grades – no máximo, uma cerca com três arames para delimitar o espaço. É comum ver meninos treinando o swing (movimento de corpo ao usar o taco) com pedaços de madeira durante as brincadeiras nos campinhos e nas calçadas. Na fase adulta, com o conhecimento adquirido vendo à distância os jogadores no campo de golfe, muitos acabam trabalhando como caddie no próprio Campestre ou em outros clubes do Estado e do país. O caddie é responsável por carregar a sacola do jogador e ser o conselheiro e apoiador moral durante as partidas. A função exige conhecimento do campo e de estratégias de jogo, algo simples para quem cresce no Armour.
Foi analisando os pequenos moradores que o ex-golfista profissional, escritor e sócio do Campestre Thomaz Albornoz Neves, 55 anos, natural de Santana do Livramento, decidiu mudar os rumos do clube. Há duas décadas, completadas neste ano, ele obteve autorização para abrir as portas aos que não teriam condições de frequentar o espaço. Neves viu nos meninos do bairro a chance de formar bons cidadãos e, quem sabe, golfistas. Mas não foi fácil convencer alguns sócios sobre o impacto da iniciativa. E, mesmo depois de anos de trabalho e resultados positivos alcançados, até hoje ainda surgem olhos tortos ao projeto.
— Essas crianças sempre tiveram muita fome de aprender. Então, conseguimos fazer com que os melhores jogadores entre os caddies do bairro começassem a ensiná-las. Aquele que sabe um pouquinho ensina para o que não sabe nada. É como uma escada de educação — explica Neves.
Exceto por um convênio com a Federação Rio-grandense de Golfe, o projeto não tem apoio financeiro. A escola se mantém com as doações de equipamentos, calçados e roupas encaminhadas por jogadores de diferentes Estados, além da boa vontade de Neves e do atual professor, Pablo Chimendes, 30 anos, que começou como caddie aos 12 e, cinco anos depois, ingressou no projeto social. Chimendes é o maior exemplo de resistência entre os participantes do Boa Bola. Jogador profissional desde 2017, no auge da carreira ele precisou parar ao descobrir uma doença rara que o levou a dois transplantes de córneas. Quando ambas começaram a calcificar, precisou de uma cirurgia no olho esquerdo, em 2017, e outra no direito, em 2018. Hoje, ele enxerga “quase 100%”, mas tem a sensibilidade apurada, que o obriga a usar óculos escuros o tempo inteiro. Três vezes por semana, dedica-se às aulas no Campestre como forma de agradecimento pelo que o golfe vem lhe proporcionando.
Para Neves, a escola quebrou a aura aristocrática do clube de elite e criou uma convivência com o bairro que a circunda. Ele acredita que o golfe seja um instrumento pelo qual os meninos possam evoluir na vida. Exemplos não faltam. O maior deles, lembrado por todos com orgulho, é o do jovem Herik Machado, 21 anos. Órfão de pai desde os seis anos, o sexto de sete filhos, o garoto de fala mansa encontrou-se com o golfe por acaso. Como morava próximo ao clube, imitava com um cabo de vassoura as tacadas dos jogadores nos buracos improvisados na rua. Aos nove anos, ele se tornou caddie para ganhar R$ 20 por rodada de 18 buracos.
Um ano depois, já acostumado com “o outro lado da cerca”, pediu para participar do projeto social. E nunca mais parou. Depois do Campestre, tornou-se atleta da equipe do Belém Novo GC, em Porto Alegre. Foi campeão mundial amador e, até fevereiro deste ano, era o melhor brasileiro do Ranking Mundial Amador de Golfe (WAGR), na 137ª posição. No mesmo mês, iniciou uma nova fase da carreira, passando a treinar como profissional no São Paulo Golf Club (SPGC). Herik joga torneios da Confederação Brasileira de Golfe (CBG) e participa como convidado em vários torneios do PGA Tour Latinoamérica. Mas não esquece as raízes:
— O Boa Bola foi a minha segunda casa, uma das melhores fases da minha vida. O Thomaz se doa ao projeto como poucos e trata as crianças como se fossem filhas dele. Sou muito grato por ter conhecido o golfe no projeto e por todas as oportunidades que ele me deu.
Neves explica que, mesmo não visando à profissionalização dos jovens no esporte, o projeto lançou nomes de sucesso no golfe e abre um mercado de trabalho diferenciado para os participantes. Os que não desistem se tornam professores ou atletas, compartilhando nos clubes nos quais eles estão o mesmo esquema desenvolvido na escola de Livramento.
No Campestre, as aulas ocorrem três vezes por semana, mas os alunos podem circular todos os dias pelas dependências do clube. Nos finais de semana, quando não está em viagem, Neves é quem comanda treinos para quem quiser participar – sem obrigatoriedade. As aulas lotam. O grupo tem 17 participantes – cinco meninas e 12 meninos, com idades entre oito e 18 anos. A única exigência é que estejam estudando e, de preferência, com boas notas na escola. Todos recebem doações de roupas, calçados e equipamentos específicos para o esporte – uma bolsa com 14 tacos (chamada de taqueira) custa, em média, R$ 7 mil, e os sapatos impermeáveis e com travas de borracha custam a partir de R$ 400. O grupo da manhã costuma se reunir para chegar junto ao campo. Por morarem mais próximos dos buracos 1 e 2, nos fundos do Campestre, os meninos e meninas preferem pular a cerca de arame e irem direto ao ponto de encontro. Alguns chegam de carroça. Outros, montados em burros ou cavalos. Todos carregam os próprios tacos.
O treinamento dura uma hora e meia. O idealizador do projeto não consegue aumentar a estrutura para atender mais interessados por ser um esporte que exige atenção redobrada para cada aluno. Pitoco é um deles. Inteligente e comunicativo, transforma-se quando tira o protetor do taco favorito, em formato de urso, e se encaminha para o lance. O irmão dele, Wagner Martins, 11 anos, é outra promessa do projeto, pois tem o swing parecido com o de Herik.
— Se pudéssemos, ficaríamos o dia inteiro aqui, mas a gente tem que ir para a escola — afirma Wagner.
Mais do que responsável por tornar profissão o que era brincadeira, Neves se transformou em amigo dos meninos. Muitos o veem como principal conselheiro. Mas a falta de perspectivas nas próprias famílias obriga muitos a desistirem do esporte para trabalhar buscando rendimentos imediatos. O acesso às drogas é outro problema a ser superado. Entre os mais novos, a fome também acaba atrapalhando os treinos. Neves lamenta não ter como dar lanche aos participantes depois dos treinos.
O que mais importa é o convívio, que faz com que as crianças saiam mais preparadas para o mundo. Eles se dão conta que não é possível mentir jogando golfe. Ninguém é mais do que ninguém jogando golfe.
THOMAZ ALBORNOZ NEVES
— Já tivemos problemas com alunos. Há casos de agressividade, indisciplina e falta de controle da raiva. Em qualquer outro lugar, um participante assim estaria fora. Mas, como eu e Pablo conversamos, é fácil formarmos um Herik, que tem talento de nascença. Difícil é atender aquele com problemas trazidos de casa. E é por esses que estamos aqui — resume.
Para arrecadar fundos ao projeto, o ex-golfista profissional acaba de lançar um livro contando a história do golfe em Santana do Livramento.
— Quando vejo eles jogando, me realizo. É como ver a manifestação daquele potencial natural que eu via desperdiçado no bairro antes da existência da escola — diz Neves.
"Quero ser o novo Herik"
Aos 15 anos, Carlos Eduardo Brum é uma promessa do esporte. Vizinho do campo, passa mais horas ali do que em casa. A paixão pelo golfe acabou confundindo o garoto, que já pensava em desistir da escola para continuar praticando. Foi necessária a intervenção de Neves para o jovem retomar os estudos. Hoje, já consciente da necessidade de concluir o Ensino Médio, joga pela manhã e estuda à tarde. A mãe, a atendente do bar do Campestre, Fátima Andréa Brum (na foto com o filho), aprova a participação dele nos treinos.
— Antes do projeto, ele não acordava cedo e era mais agitado também. O golfe ajuda muito a moldar para melhor o meu filho. Até eu pedi para participar — comenta Fátima, que nas folgas arrisca algumas tacadas no campo.
Para Carlos Eduardo, o Boa Bola pode ser o trampolim para se tornar profissional no golfe.
— Estou treinando muito para seguir na profissão. Quero ser o novo Herik — afirma.
Para ajudar
Além de aceitar doações de material específico do golfe, o projeto Boa Bola recebe roupas e calçados comuns, que são distribuídos aos mais carentes do bairro. O Boa Bola também busca parcerias com empresários que quiserem ter o nome de sua companhia associado ao projeto.
Contatos pelo fone (55) 9992-8272 ou pela página do grupo no Facebook, acessível em bit.ly/projetoboabola.