Maria Córdova, 31 anos, quase não pisca ao acompanhar a bola de futebol, que passa com velocidade de pé em pé, na quadra esportiva. Posicionada na linha lateral, ela orienta os jogadores das duas equipes. Só deixa essa espécie de transe quando um dos times balança a rede adversária. Também árbitra da partida, Tida, como Maria é mais conhecida, apita, validando o gol. É a hora de sorrir, elogiar a habilidade dos jogadores e, em troca, receber agradecimentos do grupo. Em seguida, ela aponta para o centro do campo e reinicia a partida. Cinco vezes por semana, a cena se repete no ginásio municipal de São Francisco de Paula, num campo de futebol e na quadra de saibro da Escola Municipal de Ensino Fundamental Castelo Branco, no bairro Santa Isabel. Há 10 anos, começou ali, idealizado por Tida, o projeto Meninos da Vila.
Ala esquerda e zagueira desde a infância, com passagens por diferentes equipes da região serrana, Tida sempre quis desenvolver um trabalho social na comunidade onde foi criada e vive até hoje. Em 2009, ela deu o pontapé inicial ao reunir os filhos das amigas para aulas gratuitas sobre o tema que mais dominava: futebol. Foram selecionados 20 meninos para treinar na quadra da Castelo Branco, depois do horário da aula. Nos meses seguintes, os treinos atraíram a atenção das crianças e dos adolescentes das redondezas — das comunidades de Cipó, Campo do Meio e Rincão. Tida percebeu que, muito além do espaço de lazer, a prática esportiva poderia ser um caminho para formar cidadãos capazes de alcançarem os próprios sonhos sem esquecer as origens.
— Queria mostrar a eles como o futebol ajudou na minha infância. Eu podia estar nas ruas, mas tive professores que me orientaram. O esporte pode transformar vidas, só precisamos correr atrás do que a gente quer — defende.
No decorrer da última década, mesmo com o crescimento do projeto, ela conseguiu conciliá-lo com a carreira esportiva. Há três anos, também incluiu na agenda as aulas noturnas no curso superior de Educação Física, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo. Em 2017, no auge da carreira, treinou por sete dias no Internacional. Mas desistiu de permanecer na Capital para continuar com o projeto Meninos da Vila e, principalmente, por sentir as dores que meses depois a fariam desistir da carreira como atleta amadora.
Durante anos, Tida suportou uma artrose no quadril, enquanto esperava por uma cirurgia corretiva via Sistema Único de Saúde (SUS). Para esconder o problema, corria ainda mais em campo. Aprimorou o talento como zagueira. Porém, o desgaste ósseo foi evoluindo com o passar do tempo — quase cinco centímetros do lado esquerdo já foram consumidos e a fazem caminhar mancando.
Sem condições financeiras de arcar com os custos de uma cirurgia particular — cerca de R$ 30 mil —, Tida obrigou-se a tomar a difícil decisão de abandonar a carreira precocemente. No ano passado, sem conseguir suportar as dores depois de cada partida, ela decidiu focar apenas no projeto social.
Faltam oportunidades para muitas crianças. Principalmente para as que vivem nas periferias.
MARIA "TIDA" CÓRDOVA
Apesar de divulgá-lo nas redes sociais para conquistar parceiros, a ex-atleta conta apenas com o apoio financeiro do marido, o eletricista Cláudio Almeida, 35 anos, com quem está casada há 12 anos. Tida, que trabalha no Centro Municipal de Integração Social, tirou do bolso o dinheiro necessário para adquirir duas bolas, 20 coletes — usados apenas em competições — e outros equipamentos para os treinamentos.
Mais de 1 mil crianças e adolescentes já passaram pelo Meninos da Vila, pelos cálculos da ex-atleta. Atualmente, os treinos ocorrem às segundas e terças-feiras, no campo do Daer, às sextas-feiras, na escola Castelo Branco, e aos sábados, no ginásio e na Castelo. Tida não exige uniforme porque sabe as condições de vida de cada aluno. Muitos não têm tênis e acabam jogando descalços. Outros enfrentam problemas familiares. Alguns dependem da ajuda extra da professora para se alimentar.
A reportagem de GaúchaZH acompanhou dois dos treinos, no ginásio e na quadra de saibro, e viu Tida mudar da mulher brincalhona e de sorriso largo, antes das aulas, para a técnica atenta e disciplinada que não perde um lance dentro e fora das quatro linhas. Carregando um apito junto ao pescoço e um cronômetro preso ao pulso, ela iniciou a aula acompanhando atentamente a passagem de 40 alunos pelos oito cones, distribuídos em linha reta. Numa velocidade que dificultaria o trabalho até do mais experiente narrador de partidas de futebol, a técnica sugeriu melhorias a cada um dos presentes na fila, exigindo agilidade nos movimentos.
— Continua! Levanta o joelho! Isso! Ponta do pé! Olha os braços, coordenação. Sai do chão! De novo!
Depois de meia hora de aquecimento, o grupo partiu para o coletivo. Enquanto uns jogavam, os outros aguardavam ao lado ou ficavam brincando com a outra bola. Meninos e meninas, entre oito e 18 anos. Todos integrados.
— É importante passar para eles que o esporte é respeito, é união e solidariedade. Eles precisam tentar se colocar no lugar do outro — comentou, no final da atividade.
E foi com esse discurso que ela iniciou o treino no dia seguinte. Antes do alongamento, reuniu as equipes no meio da quadra de saibro e discursou. Havia a informação de que alguns participantes estavam criando intrigas no grupo.
– Futebol é aquela magia, é gostar, disputar, mas uma disputa saudável, entenderam? Uma disputa na qual não vou prejudicar meu colega, não vou machucá-lo fisicamente. Vamos jogar e nos divertir, a gente está aqui para isso. Somos um único grupo, e eu quero formar um grupo campeão. Se vocês não aprenderem aqui, vão levar na cara da vida. E vocês vão ver que dói mesmo! – disse, antes de finalizar e receber aplausos de toda a equipe.
Sempre positiva, a ex-atleta mantém o sonho de voltar a caminhar sem dificuldades, ter mais voluntários no projeto e, principalmente, erguer um complexo esportivo para treinar mais crianças.
— Sigo acreditando que os melhores dias ainda chegarão. Tem uma música (do Jota Quest) que repito sempre porque diz tudo sobre a minha vida: “Vivemos esperando o dia em que seremos melhores. Melhores no amor, melhores na dor, melhores em tudo”.
"Ela é uma segunda mãe"
A dona de casa Marli Terezinha Anacleto acompanha o projeto há cinco anos, desde que os netos Nathaniel e Gabriel, que são primos e têm 12 anos, passaram a treinar com Tida. Marli é a responsável por eles. Ela constatou a melhora dos meninos na escola desde seu ingresso no projeto.
— Eles passaram a ter mais disciplina e foco nos estudos. A Tida cobra muito as boas notas na escola. Se tirarem vermelha, não têm direito a jogar. Então, eles capricham nas provas — conta.
Nathaniel, aos 10 anos, chegou a ser convidado para treinar em um clube da Capital, mas recusou por não conseguir ficar longe da avó. Agora, mais experiente, planeja passar por novos testes. Se aprovado, promete não desperdiçar a chance.
Ao lado do campo, Marli os incentiva a seguir no esporte. Para ela, Tida é o exemplo a ter como referência.
— Ela gosta mesmo, faz por amor aos guris, que são carentes e precisam de orientação. Para muitos, ela é uma segunda mãe — resume.
Para ajudar
O projeto precisa de materiais esportivos, como bolas, coletes, uniformes e, principalmente, tênis para as crianças e os adolescentes. O contato é pelo WhatsApp: (54) 99910-5570.