A rua íngreme, iluminada pelo sol do meio-dia, obriga o policial militar reformado Ricardo Fernandes, 61 anos, a multiplicar a força que conduz o carrinho de ferro com capacidade para 300 quilos. Em meio às lentas passadas pelo bairro Morada do Vale III, em Gravataí, Fernandes apara na camiseta o suor do rosto. Também consegue acenar aos pedestres que o reconhecem durante a caminhada.
De repente, surge uma senhora e joga uma sacola dentro do veículo de tração humana. Mais à frente, um homem se aproxima e deposita ali um saco de 50 litros, usado geralmente para lixo. Fernandes agradece a ambos. E segue.
Depois de caminhar cerca de 10 quilômetros numa única manhã, retorna para casa com o carrinho cheio. No portão, a esposa, Adelaide Ribeiro, 68 anos, o espera para o segundo descarregamento do dia. De dentro das sacolas, surgem calças jeans, camisetas e casacos. Cada peça é posta separadamente sobre um cavalete. Também há sapatos, tênis e sandálias de diferentes tamanhos. Sucessivamente, eles abrem todas as doações recolhidas pelo caminho. O material fica separado em uma área à entrada da morada do casal. Uma hora depois, Fernandes volta à estrada, e a mulher, à seleção das entregas. Há três décadas, completadas neste ano, essa é a rotina do casal.
Todos os dias, o brigadiano reformado percorre cerca de 20 quilômetros. Em Gravataí, ele é conhecido como a ponte entre aqueles que desejam doar e os que precisam de ajuda. As marcas da rotina árdua estão na pele queimada pelo sol, nos calos permanentes nas mãos ásperas, nas rachaduras nos pés – os chinelos de borracha que ele gosta de usar são trocados duas vezes por mês. O desejo de auxiliar o próximo surgiu ao ver um morador de rua idoso tendo um prato de comida negado por uma pessoa. Naquele instante, comovido, decidiu que faria algo para ajudar os outros. Na época, ele havia deixado a Brigada Militar por motivos de saúde (é diabético e tem problemas neurológicos que o impediram de prosseguir trabalhando na corporação).
No início, o casal fazia doações esporádicas das próprias roupas. Fernandes foi se desfazendo de bens materiais para servir aos mais necessitados. Fez voto de pobreza. E decidiu ampliar a ação. Apoiado pela mulher, começou mobilizando os vizinhos. Em poucas semanas, as arrecadações triplicaram. Sem carro, a família optou por um carrinho usado em reciclagem. Aos poucos, a rede de solidariedade foi se formando. Hoje, comerciantes da cidade e inúmeros voluntários os apoiam regularmente, tornando-se parceiros na iniciativa.
Sem auxílio do poder público, o casal divide-se nas tarefas para manter a vida organizada em meio às doações. Eles contam com a ajuda do sobrinho Guilherme Umpierre, que tem 17 anos e há quatro dedica algumas horas da semana para auxiliar no trabalho braçal. Além das roupas e dos calçados, Fernandes recolhe também garrafas e latas de alumínio. Por mês, consegue cerca de R$ 800. O dinheiro é revertido em materiais usados para a limpeza das doações e para os pagamentos da energia elétrica e da água consumidas nessa função.
Na casa da família, o material passa por uma minuciosa inspeção. Todas as peças são lavadas em três máquinas. Depois, separadas por tamanho e gênero. Em seguida, são distribuídas em sacos de 50 litros e empilhadas nos cinco galpões construídos no terreno da família. De lá, saem para a distribuição final.
— O bem pode ser feito na sua rua, no seu bairro, no seu município e em qualquer outro lugar — diz Fernandes, incentivando o voluntariado.
Em um mês, o casal reúne mais de 100 mil peças de roupas e 30 mil pares de calçados. A organização de tanto material impressiona — é graças a ela que tudo funciona plenamente. Os Fernandes recebem qualquer um que tenha interesse em conhecer a ação social. A casa de oito cômodos conta com mais doações — que incluem ainda colchões, travesseiros e cobertores — do que móveis.
Um dia vamos partir e não vamos levar nada nem ninguém. Para que ter 10 TVs, se não dá para usar todas? Olhe as pessoas que estão em pior situação. E não as julgue. Ajude.
RICARDO FERNANDES
PM reformado
Em 30 anos, o casal fez entregas em mais de 200 municípios gaúchos, catarinenses e até uruguaios e argentinos atingidos por enchentes ou vendavais. E, quando sobra material — agora, por exemplo, dois galpões estão com duas cargas prontas —, ele telefona para as prefeituras oferecendo o auxílio.
Muitas, no entanto, dizem não ter condição de enviar um carro para transportar as doações. Com o tempo — e o reconhecimento —, o casal hoje em dia é acionado pelas próprias secretarias municipais de Assistência Social. É como se fosse uma Defesa Civil paralela ao serviço oficial. Para repassar o material arrecadado, os dois exigem apenas que a cidade contemplada forneça um caminhão, leve Fernandes para acompanhar as entregas e faça um certificado confirmando a doação. Nas paredes de alvenaria da casa da família e em 20 pastas estão guardados mais de 5 mil diplomas de agradecimento, encaminhados pelas prefeituras auxiliadas nas ações. Emoldurados em quadros ou selecionados em sacos plásticos, eles acabaram se tornando uma fonte de energia para Fernandes seguir na atividade e superar os problemas de saúde que o obrigaram a sair da ativa na BM.
— Às vezes, quando estou triste, olho para os quadrinhos e eles me animam. Lembro de uma ação e de que eu ajudei um companheiro, uma companheira — comenta.
Além dos certificados, Fernandes passou a colecionar também todos os tipos de presentes — de compotas de doces a troféus, medalhas e bandeiras municipais e dos países vizinhos. São honrarias entregues por prefeituras, câmaras de vereadores, escolas, igrejas e associações comunitárias por onde a caravana da solidariedade já passou. Da quilometragem percorrida nas andanças ele perdeu a conta. Alguns municípios, como Coronel Bicaco, de 7,7 mil habitantes, localizado no Norte do Estado, aceitou doações pelo menos quatro vezes.
Doações em dinheiro ele não aceita. Mas diz se sentir um milionário — como se estivesse “nadando numa piscina cheia de cédulas e moedas”:
— A maior fortuna é poder ajudar.
"Faz bem para a minha alma"
Habitante do bairro Morada do Vale II, em Gravataí, a dona de casa Dolores Ribeiro, 68 anos, é voluntária da ação há cinco anos.
Ela conheceu o trabalho dos Fernandes por meio de uma igreja e começou a arrecadar doações entre os vizinhos mais próximos.
Sua casa, hoje, tornou-se um dos pontos de coleta na região. A cada semana, ela reúne uma dezena de sacos com roupas, calçados e brinquedos, que são repassados ao casal.
Dolores, que é viúva e mora sozinha, conta ter sofrido de depressão durante anos. Ela afirma ter se curado desde que começou a trabalhar na causa social:
— É uma ação bonita porque há muitos necessitados precisando de apoio. Me sinto muito bem fazendo a minha parte. Estou realizada e ajudarei enquanto eu puder. Faz bem para a minha alma.
Saiba mais
Ricardo Fernandes disponibiliza o telefone (51) 99806-9860 para quem quiser doar e para as prefeituras que desejarem receber as doações.