Os sons se misturam no salão de 500 metros quadrados, repleto de caixas de leite por todos os cantos. Enquanto novas embalagens são retiradas das sacolas e separadas por marcas e cores, a guilhotina corta as bordas das caixas já abertas. Em outro extremo, figuras coloridas são recortadas das sobras de embalagens para formarem jogos de memória e de encaixe que serão distribuídos nas escolas. Outras peças viram adesivos. Mais à frente, grampeadores e máquinas de costura conduzidas por mãos ágeis unem as caixas, formando placas contornadas com ripas de madeira. O cenário é o de uma linha de produção de isolantes térmicos, que foi idealizada numa noite insone de temporal e frio, em Passo Fundo, em 2010, pela química industrial e empresária Maria Luiza Camozzatto.
Caminhando de um lado para o outro enquanto observava o granizo pela janela, Maria, hoje com 63 anos, pensou nas moradias de madeira, sem forração interna, com frestas e, por isso, mais suscetíveis às intempéries. Queria ajudar as famílias que vivem dessas casas a suportarem temporais de verão e temperaturas extremas de inverno na região. O insight, definido por ela como “um plano divino”, surgiu em uma frase que veio de repente: “Chega de te incomodar, fecha com caixa de leite”. Ex-professora de química industrial na Universidade de Passo Fundo (UPF), Maria sabia que a embalagem cartonada dura cerca de 200 anos e poderia ser a matéria-prima perfeita para forrar paredes. Cada peça tem seis camadas – quatro delas de plástico, que evitariam a entrada da chuva, uma de alumínio, excelente isolante térmico, e outra de papelão, responsável pela flexibilidade.
Na manhã seguinte, pesquisou sobre o tema e reuniu as primeiras caixas do leite consumido em casa. Uma semana depois, deu início aos testes para juntar as peças e usou diferentes tipos de grampeadores até encontrar os equipamentos certos. Ao mesmo tempo, começou a divulgar a intenção para encontrar um grupo de voluntários. Quem não acreditou no projeto, porém, a desestimulou.
— Mas eu tinha a missão de ajudar o próximo. Precisava agradecer tanta coisa maravilhosa que eu havia conseguido na vida — justifica.
Durante um ano, a química industrial espalhou o propósito pela cidade, ouviu conselhos, até conseguir uma quantidade inicial de pessoas interessadas em ajudá-la naquilo que se transformou no projeto Brasil Sem Frestas. Para chegar às famílias necessitadas, buscou auxílio nas igrejas e lideranças locais. Era preciso estreitar os laços com os moradores antes de ingressar em suas casas.
Os primeiros contemplados foram os habitantes dos bairros José Alexandre Zachia e Planaltina. Sem ainda ter uma técnica desenvolvida para as reformas, ela e os voluntários começaram pregando uma a uma as caixas nas paredes. A prática confirmou a impossibilidade de o trabalho continuar naquele ritmo. Um problema eram as embalagens sujas, responsáveis pelo mau cheiro no espaço reservado para a coleta e a separação. Depois de inúmeras tentativas de operacionalização do processo, a equipe passou a produzir chapas de 70 centímetros quadrados, tamanho ideal para o transporte no porta-malas do carro que transporta o grupo. A organização também chegou ao atual modo de trabalho, descrito no início desta reportagem.
No grande galpão cedido por um voluntário, que antigamente abrigava um supermercado, Maria e a equipe se reúnem duas tardes por semana, das 13h30min às 18h. O objetivo é cobrir uma ou duas casas por semana. Hoje, 20 pessoas participam diretamente da ação. O projeto tem também um brechó na entrada do prédio. Duas voluntárias são responsáveis pelas vendas. A renda é revertida para a compra de novos grampeadores, grampos e conserto do maquinário.
Ao todo, 215 casas de Passo Fundo foram contempladas pelo Brasil Sem Frestas. Outras 15 estão na lista de espera. Maria diz que poderia ter ajudado mais gente, mas faltam voluntários. O exemplo, de todo modo, está dado — e a possibilidade de inspirar outras cidades, lançada. É o que vem ocorrendo: pelo menos 20 municípios, entre eles Rio de Janeiro e Curitiba, já reproduzem a ideia.
— É gratificante, porque vamos nas casas de pessoas que não conhecemos e, em troca, recebemos gratidão. Viemos ao mundo para dar amor. E estamos conseguindo — afirma Maria.
Segundo ela, o material serve para qualquer tipo de clima. Isso porque, nos locais mais frios, o grupo instala a parte prateada virada para dentro da casa. Já naqueles em que o clima é um pouco mais quente, a orientação é colocar o lado estampado para dentro de casa. Em regiões de calor intenso, é possível instalar as caixas com a parte prateada para dentro do imóvel, mas é necessário cobrir o forro também. Dessa forma, o sol é rebatido na telha. No verão, a temperatura interna pode baixar até 8ºC.
Aprendo todos os dias com a ONG. Conheci muitas pessoas legais, famílias que se amam de verdade, que se cuidam. Hoje, sou uma Maria que aprendeu a amar e a dar mais amor.
MARIA LUIZA CAMOZZATTO
Idealizadora do projeto
GaúchaZH acompanhou a instalação das placas na 215ª casa contemplada pelo Brasil Sem Frestas. A moradia de uma única peça de madeira, no bairro Vila Isabel, abriga a dona de casa Ana Paula da Silva, 31 anos, e a filha Ana Vitória, de um ano. Há menos de dois meses, Ana Paula construiu a choupana, e ainda não havia “duplado” as paredes de madeira. Por isso, mantinha lençóis cobrindo as frestas. Em quatro horas, o grupo retirou os móveis e cobriu as quatro paredes e o forro. Fazia 28ºC numa quinta-feira de março, mas, dentro da casa, a sensação térmica não passava dos 21ºC. Para finalizar a obra, Maria e seus ajudantes distribuíram vaquinhas coloridas pelas paredes. Os adesivos eram recortes de caixas de leite. Quem gostou foi Ana Vitória, que não parava de pedir para mexer nos desenhos.
— Ficou outra casa. Quando eu conseguir “duplá-la”, não tirarei as caixas. Elas ajudam a amenizar o calor — comenta Ana Paula.
Com a criação do projeto, Maria garante ter tirado lições para sua vida. Desde os 46 anos, ela luta contra a esclerose múltipla. Nos primeiros dois anos de diagnóstico, perdeu os movimentos dos braços e das pernas. Um tratamento médico iniciado em Porto Alegre reverteu o quadro. Apesar de ter perdido a força e a velocidade nas pernas e de precisar de medicação semanal para a doença, Maria se considera abençoada por manter vivo o Brasil Sem Frestas — uma iniciativa que ajudou ela própria a se manter viva.
"É como uma criança ganhar um presente"
A curiosidade motivou a alfabetizadora Harty Diersmann, 63 anos, a integrar o Brasil Sem Frestas – o que ela faz há seis anos. Convidada por uma amiga a conhecer a ONG, Harty impressionou-se ao ver a movimentação dos voluntários na área de produção das peças. Pediu para retornar na semana seguinte. Desde então, é uma das mais envolvidas com o projeto.
Harty é quem auxilia Maria na distribuição das tarefas, atua em todos os setores e faz parte da equipe que instala nas casas as paredes de caixas de leite. Ela afirma ter satisfação pessoal ao ajudar quem necessita do trabalho da entidade. E embarga a voz quando lembra de cada experiência já vivida na Brasil Sem Frestas.
— Nossa... É como uma criança ganhar um presente. Ver aqueles sorrisos nos olhos das pessoas, dos moradores, das pessoas mais velhas e das crianças me deixa de alma lavada a cada nova ação — sintetiza.
Para ajudar
Saiba mais detalhes do projeto em facebook.com/brasilsemfrestas