No meio da tarde do último dia útil da semana, enquanto muita gente conta os minutos para encerrar o expediente, o samba ferve na esquina das ruas Barão do Gravataí e Múcio Teixeira, no bairro Menino Deus. Quem dá-se ao luxo de curtir a festa vespertina já trabalhou o suficiente: aposentados de 60 a 90 anos são maioria entre os frequentadores da tradicional roda de samba no Boteko do Caninha.
Organizado pela Confraria União do Samba, associação beneficente comandada por Antonio Lourenço Gonçalves, 58 anos, o evento semanal ocorre há quase três anos no bar, que até então costumava privilegiar as festas noturnas. As tardes de sexta-feira viraram uma espécie de matinê da velha guarda, embalada por uma banda que reúne nomes conhecidos do samba em Porto Alegre, como Paulinho do Banjo — que na confraria toca surdo — e o veterano Chumbinho, 91 anos, um dos fundadores do Grupo Senzala.
A música começa por volta das 15h, mas há quem chegue ainda mais cedo. Nesses casos, o evento começa à mesa: a confraria tem dois assadores que se revezam em uma das churrasqueiras disponibilizadas pelo bar, basta levar carne. De óculos escuros, sentada à mesa, em uma das que ficam junto à janela, Rosa Maria da Silva Gomes, 73 anos, abanava-se com um leque numa excepcionalmente ensolarada sexta-feira de outono (dia 7) enquanto aguardava pelo assado.
— Aqui é a família. A gente se sente em casa — resumiu, enternecida.
Moradora da Zona Sul, começou a frequentar rodas de samba depois de ficar viúva, anos atrás. Foi quando conheceu Jobar, atual companheiro e violonista da banda, cuja soma das idades dos sete integrantes ultrapassa 500.
— Onde tem homem e mulher tem paquera, né — brinca Rosa, que nas apresentações de Jobar dança sozinha para não deixá-lo enciumado.
O flerte é comum no samba da confraria, que nos dias mais animados reúne algumas centenas de pessoas no Boteko do Caninha. Quase todos os solteiros — e pelo menos uma comprometida — ouvidos pela reportagem admitiram aproveitar o momento para se aproximar de quem desperta interesse. Nem a banda escapa às investidas.
— Os músicos são muito admirados... Às vezes chegam bilhetinhos com número de telefone — conta o percussionista e vocalista Luiz Carlos da Silva, 82 anos.
Para alguns dos frequentadores, parte importante da interação começa na dança. De batom vermelho e blusa estampada de onça, Sandra Barbosa de Lima, 65 anos, conta que sempre gostou de samba, mas tornou-se assídua em matinês e rodas de música depois que se separou, há 10 anos. Assim como outros entrevistados, além do Caninha, costumar ir ao Ipiranguinha, na Avenida Princesa Isabel, aos sábados.
— Onde tiver samba, eu vou. Às vezes a pessoa te tira para dançar e, quando a gente vê, já está conversando — sorri.
Microfone aberto atrai cantores
Nem só de samba no pé é feita a confraria, que começou com despretensiosos churrascos realizados antes de bailes em clubes e associações, cerca de sete anos atrás. Em uma mesa em frente ao palco, uma pasta com centenas de músicas convida cantores profissionais ou de ocasião a darem "uma canja" na matinê.
Entre as opções, além de sambas de raiz, há clássicos do cancioneiro popular. Segundo o presidente da União do Samba e vocalista da banda, Antonio Gonçalves, conhecido como Tanaka, é possível sugerir canções de outras vertentes, desde que sejam executadas no ritmo preferido dos músicos.
— Se quiser cantar um rock, tudo bem. Mas em ritmo de samba é melhor — explica Tanaka, que encerra os shows sempre com a mesma música: uma versão animada de Jesus Cristo, famosa na voz de Roberto Carlos.
Com o microfone aberto, há quem só vá para cantar. Sentada sozinha junto à janela, Katia Santos, 71 anos, tomava água sem gás enquanto aguardava pela vez de brilhar — naquele dia, era a primeira da lista de inscritos, feita em um caderninho.
— Se eu não canto, fico braba — diz a cozinheira aposentada.
Naquela sexta-feira, tinha levado impressas duas letras: Samba Quadrado, de Milton Carlos, e Menino Sem Juízo, de Alcione. Depois de ser entrevistada pela reportagem, porém, resolveu mudar. Escolheu canções que já sabia de cor, para "não ser fotografada com uma folha na mão". De voz grave, a cantora profissional — orgulha-se de ter conquistado a carteirinha da Associação de Músicos Gaúchos — sorria enquanto cantarolava um música lenta, buscando a atenção do público.
Por volta das 16h30min, já eram dezenas os frequentadores do evento, que se estende até as 22h. Enquanto alguns tomavam cerveja sentados, outros arriscavam passos, com ou sem par, na área livre entre as mesas. Apesar de ser organizada pela União do Samba e de ter como público alvo os mais velhos, a roda de samba é aberta, gratuita (o grupo arrecada alimentos e produtos de higiene para doar a instituições carentes) e receptiva a simpatizantes de todas as faixas etárias.
Moradora da Restinga, no Extremo Sul, Rozani Fagundes, 46 anos, é das mais jovens entre os frequentadores. Ela descobriu o evento por acaso: precisava usar o toalete quando passou na frente do bar, numa sexta-feira à tarde. Aproveitou para sentar-se a uma mesa, tomar uma cerveja e ouvir algumas músicas.
— Na semana seguinte resolvi dar uma passadinha, e desde então venho todas as sextas-feiras. Ainda não posso me associar, porque a idade mínima é 50 anos, mas eles me adotaram. Chego aqui e recarrego as energias. Acho que para eles é a mesma coisa — sorri.