Por quase uma década, cruzar a porta de um dos mais tradicionais redutos boêmios do Centro Histórico às terças-feiras era como atravessar um portal: aos primeiros acordes do bandoneon de Rafael Koller, Porto Alegre convertia-se nos subúrbios da Buenos Aires do começo do século 20, de onde os clientes só saíam depois do último tango. A passagem fechou-se em silêncio no início do ano. Sem alarde, o músico de 87 anos retirou-se da vida noturna da Capital, encerrando a noite temática que virou marca registrada do bar Odeon, na Rua General Andrade Neves.
— Por enquanto, não vou colocar nada nesse dia. Acho que não ia funcionar bem sem o Rafael, porque o público dele não vem... Eu também sou público dele, mas tenho de vir todos os dias — lamentou Celestino Paz Santana, o Tino, proprietário do bar.
Parceiros de Koller no tango que reunia dezenas de pessoas a cada terça-feira — por vezes atraía tanta gente que parte dos clientes assistia à apresentação de fora do Odeon —, a pianista Dionara Schneider e seu filho Bernardo Zubaran, que toca harmônica, passaram a se apresentar às quintas-feiras, em uma noite de música latina. Rafael, que também tocava no bar Parangolé, na Cidade Baixa, evitou despedidas.
— Não falei nada. Até fiquei de voltar. No começo acho que eles ficaram esperando, mas estou sem condições. Já toquei muito — disse o músico.
Sentado no sofá do sobrado onde vive com a filha no bairro Belém Novo, na Zona Sul, relembra com carinho a trajetória que o levou ao palco do Odeon, onde caiu nas graças de clientes de diferentes gerações. Natural de Tapes, no sul do Estado, mudou-se definitivamente para Porto Alegre na década de 1970. Foi quando começou a atuar como músico profissional, tocando em bares e restaurantes e, posteriormente, acompanhando grupos de danças latinas em viagens pelo Brasil e pelo Exterior — ironicamente, nunca esteve na capital argentina, meca do estilo musical que marcou sua carreira.
A relação com o instrumento característico do tango é bem mais antiga. Começou aos oito anos, quando o avô paterno, multi-instrumentista, ensinou-lhe as primeiras lições. Seu repertório também foi herança familiar: os tangos e serestas cantarolados pela mãe foram seus companheiros de palco por décadas.
— Meu repertório foi praticamente todo trazido por ela, que nasceu em Santana do Livramento e falava espanhol. Me admirava como ela conseguia armazenar todas aquelas letras — recorda o bandoneonista, que nunca aprendeu a ler partituras.
Cerca de 10 anos atrás, foi convidado por Tino para inaugurar a noite de tango no Odeon. Começou acompanhado do pianista Paulo Pinheiro — dois anos mais tarde, o posto foi assumido por Dionara. De atmosfera intimista, o bar mostrou-se o cenário perfeito para a apresentação, que iniciava por volta das 21h e não raro estendia-se até a 1h.
— Nunca fui um sonhador. Tocava para me alimentar, me satisfazer. Mas acho que tem muita gente que gosta de tango, porque todas as noites em que eu toquei tinha pessoas que vinham me agradecer — diz.
Rafael deslocava-se de carro entre a Zona Sul e o Centro. Uma das viagens custou-lhe o próprio instrumento: em 2017, foi assaltado quando ia para o trabalho. Os ladrões levaram seu carro e o bandoneon — só o veículo foi recuperado. Desde então, atuava com um instrumento emprestado de um amigo.
Após décadas de boemia, viu a própria disposição esvair-se aos poucos. Dores nas pernas e o receio de dirigir à noite — sua casa fica a quase 30 quilômetros da Região Central — foram as deixas para a discreta aposentadoria.
A vida longe dos bares é marcada pela tranquilidade. Fã de política, divide seu tempo entre as programações dos canais do Senado, do Congresso Nacional e da Câmara Municipal. Lê jornal impresso e não assiste a novelas nem a filmes — que na sua avaliação, estão "cada vez mais violentos".
Para evitar recaídas, não pegava o bandoneon até o dia em que recebeu a visita de GaúchaZH — mostrou-se inicialmente contrariado quando solicitado a segurá-lo para tirar uma foto. Bastou colocar o instrumento no colo, no entanto, para um sorriso satisfeito irromper em seu rosto.
— É um companheiro antigo... Um irmão. Mas a vida é assim: a gente cumpre uma etapa e se prepara para viver outras. Tenho certeza que muita gente está chateada, mas essas pessoas têm que saber que estou bem. Vivi muita coisa, viajei, me relacionei com pessoas que jamais esperava. Foi bom.