Na sexta-feira (31), os clientes argumentavam:
— Mas se eu comprar e não servir, como faço para trocar?
Waldemar Bronzatto, 87 anos, poderia dar de ombros, mas não seria do seu feitio. Preferiu adiar para este sábado (1) o último dia da Botinha da Zona. Sentado no canto da loja em frente à caixa registradora, de onde dificilmente se move, Waldemar vez e outra filosofa sobre a trajetória que chega ao fim depois de cem anos no bairro Azenha, em Porto Alegre.
— O meu patrimônio nunca foi sapato. Meu patrimônio é isso aí: os clientes. Os clientes são o coração da loja.
Parte pela liquidação com preços imperdíveis, parte pela oportunidade de se despedir, as últimas horas da Botinha são de pura gastação de sola de sapato para Mercedes, esposa de Waldemar, e os três funcionários que circulam entre dúzias de clientes. Enquanto isso, Waldemar se vangloria pela última vez de suas estratégias de venda.
— Eu poderia dizer que cada alpargata sai por R$ 15. Mas o cliente pode pensar que é um produto de má qualidade. Então, quando ele pergunta, eu digo que é R$ 29,90 e por R$ 0,10 a mais ele leva outro par. Aí, sim, ele enxerga uma vantagem e compra dois produtos — ensina.
Sem se mover do lugar, o lojista parece se dividir em três. O primeiro engata uma história na outra sem parar. Outro faz cálculos de troco de cabeça em velocidade impressionante, levando a mão direita trêmula sempre às cédulas corretas na caixa registradora. Já o terceiro Waldemar controla o movimento da loja de revesguelho e emite comandos batendo uma pedrinha contra o balcão. Conforme a batida, os funcionários também entendem quando é preciso ficar atento a uma tentativa de furto.
A pedrinha será uma das relíquias que o dono levará da loja, bem como o último pé de kichute, salvo quando a marca saiu de linha.
Ele faz tudo ao mesmo tempo. Enquanto alcança R$ 20 a um flanelinha que troca moedas por cédulas, conta como conheceu a esposa mais de 20 anos mais moça por quem está de mudança assim que a papelada de fechamento da loja permitir.
— Foi na praia de Morro Branco, que fica em... — Waldemar bate a pedra no balcão e Mercedes se materializa ao lado. — Mercedes, em que município fica Morro Branco?
— Beberibe.
— Isso. Em Beberine, no Ceará. E isso que a mãe dela havia recomendado não se apaixonar por um gaúcho.
Segundo Waldemar, a esposa tem um problema circulatório e foi aconselhada pelos médicos a não envelhecer em um lugar frio. Decidiram morar em Goiânia, onde ela tem mais de 10 irmãos. Ele diz ter repetido a história dezena de vezes nos últimos dias, tal o interesse da imprensa pelo fim da Botinha. Conta ter sido procurado por um jornal de São Paulo.
— Mas eu desconfio que essa reportagem não vai sair, porque a menina queria porque queria que eu falasse algo sobre o governo. Eu aprendi que lojista tem de se dar bem com todo mundo, então sobre política, religião e futebol eu não falo com ninguém — diz.
Mais ou menos. Sobre religião, Waldemar fala um bocado. Na caixa registradora, colou os dizeres: "Maria passa na frente". Algo a ser repetido em momentos de dificuldade, para que Nossa Senhora abra caminhos. Também junto à registradora ele plastificou o mantra budista "Nam myoho renge kyo" e, no verso, a sua livre tradução do Sutra de Lótus, escrita à caneta: "Devota-te a lei de causa e efeito que rege a vida".
— Eu interpreto que a sorte está com todo mundo. O que volta para ti é o que tu oferece para os outros. Aquele camarada que troca as moedas aqui, por exemplo. Se ele me fez dar R$ 10 a mais agora, tudo bem. Deixo passar. Problema é dele, que se me passar a perna, um dia vai perder o lugar para trocar as moedas dele. Entende?
Sendo o último dia da loja, não faz muito sentido. Mas é apenas mais um exemplo de que Waldemar passa as últimas horas fingindo não serem as últimas. É Mercedes quem, perto dos últimos minutos de atividade, sai dos fundos da loja com fatias de torta e oferece aos clientes. Waldemar age naturalmente, à exceção das palavras decoradas, mas sinceras, que repete a cada cliente que aproveita a última compra para contornar o balcão e se despedir:
— Eu levo no meu coração a fotografia de todos vocês.
Chegada a hora de fechar a loja, Waldemar insiste para que o repórter leve uma alpargata como lembrança. Após muito insistência, aceito trocar o presente por uma última foto dele em frente à loja. Mercedes vai junto, conduzindo o marido pelo braço. Assim, o último retrato da Botinha é o que não poderia deixar de ser: o de um par sorridente.