O verão já passou e os calorões também. Mas, quando a estação voltar, quem utiliza linhas de ônibus de Porto Alegre com trechos onde a pista não é asfaltada, concretada ou articulada – com blocos intertravados, peças pré-moldadas ou paralelepípedos – dificilmente andará em um coletivo com o ar-condicionado ligado.
Isso porque a prefeitura, por decreto, autorizou o desligamento da refrigeração em trechos do itinerário nos quais a pista não apresentar as condições já citadas. Ou seja, em pistas de terra e saibro. O decreto é o mesmo que prolongou a vida útil dos ônibus da Capital que têm mais de 12 anos – agora, os veículos poderão circular por 14 anos ou até 31 de dezembro de 2020, o que ocorrer primeiro.
Mesmo que em alguns trajetos o desligamento seja só em parte do itinerário, existem linhas que poderão não ser beneficiadas pela refrigeração. Um exemplo é o Alimentadora 74 (A74 – Cantagalo/Extrema). A linha atende a moradores da região rural do extremo sul de Porto Alegre. O ônibus circula por estradas de terra e deixa ou busca moradores no Terminal Sapolândia, de onde eles podem pegar outro veículo que vá em direção ao Centro.
A reportagem fez o itinerário e conversou com usuários da linha e moradores da região. Para eles, o novo decreto da prefeitura agrava uma situação que já é incômoda durante o ano todo: a poeira. Atualmente, os usuários garantem que, nem mesmo no verão, ônibus com ar-condicionado operam a linha. Mas, com a nova regra, a chance de isso acontecer foi ceifada definitivamente. A decepção é evidente na fala da comerciante Luana Feula, 27 anos:
– Esse trajeto, por ser em estrada de terra, é feito com os veículos mais antigos. Não vai mudar nada, vamos seguir sofrendo com o calor e a poeira.
Mãe de Luana, Enila Feula, 59 anos, diz que “até entende” as razões das empresas em não quererem colocar os veículos mais novos nas vias rurais, mais esburacadas. Porém, confessa que é difícil ter de circular com as janelas dos coletivos abertas.
– Tem que levar um pano de casa para passar nos bancos. E quem trabalha fora, é bom levar a roupa separado para trocar no serviço – pontua Enila.
Dentro do ônibus, mesmo num dia em que a terra da pista estava molhada pelas chuvas e ajustada por um patrolamento recente, a poeira se acumulava e o pó entrava pelas janelas.
No verão, é insuportável. A gente se obriga a abrir a janela e quase sufoca com a poeira.
MARELI PANDOLFO
Passageira
– No verão, é insuportável. A gente se obriga a abrir a janela e quase sufoca com a poeira – reclama a doméstica Mareli Pandolfo, 53 anos.
A pensionista Silvia Regina Marques da Silva, 63 anos, e o jardineiro Luiz Fernando da Silva, 29 anos, contam as razões para acreditar que a nova regra é mais um adendo nos problemas atuais do sistema de transporte.
– Já tem a demora, os ônibus ruins, a poeira. Infelizmente, estamos ficando acostumados com os problemas – desabafa Silvia.
"Impacto é mínimo", diz EPTC
Porto Alegre tem 5.051 ruas, estradas e avenidas. Destas, 1.405 vias não são pavimentadas, o que representa 26,4% da malha total. Os dados são da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Mobilidade Urbana.
Porém, responsável pela elaboração do decreto, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) acredita que o novo decreto afetará poucas pessoas. Conforme Flávio Tumelero, gerente de Operações de Transporte da EPTC, “a Capital tem poucas vias deste tipo (terra e saibro), em regiões do Extremo Sul ou Leste”.
– O impacto disso é quase mínimo. Importante ressaltar que, mesmo que tenha trechos de terra, quando o ônibus estiver circulando em área pavimentada, tem que ligar o ar-condicionado se a temperatura estiver acima dos 24ºC – afirma Tumelero.
Em alguns anos, explica Flávio, com as renovações de frota, todos os ônibus terão ar-condicionado, independentemente de onde circulam. Porém, a justificativa para o desligamento é justamente o que mais incomoda os usuários: a poeira.
– Na verdade, é uma questão técnica. O que acontece? Quando o veículo roda em vias de saibro tem a poeira. É uma via que tecnicamente não se indica usar o ar, pois entope os filtros, junta pó, facilita a questão da falta de higiene. Damos a opção de abrir as janelas – justifica o responsável da EPTC.
"Filtros servem para isso"
Diretora da empresa Varial Comércio de Ar-Condicionado para Veículos, Nina Cassali explica que o ar-condicionado não tem necessariamente que puxar o ar da rua. É possível que ele trabalhe com o ar que circula internamente no veículo.
– Quando precisa trabalhar com o ar da rua, os filtros servem para isso. Protegem do pólen, da própria poeira, de micróbios e outros organismos – explica.
Para ela, mesmo que a manutenção dos filtros seja mais frequente, o equipamento está preparado:
– Ao transitar por áreas de chão batido ou que emanem muita poeira, é natural que isso acabe exigindo mais dos filtros de cabine, que precisarão ser substituídos em prazo menor. Isso pode encarecer a manutenção. Porém, trafegar por essas regiões sem ar-condicionado torna a qualidade do serviço mais precária, pois a poeira circulará no interior dos ônibus, sendo inalada pelos passageiros.
Consórcios não foram orientados
Em nota, a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) disse que “não houve um pedido das empresas para a criação da nova regra”. Segundo a entidade, por enquanto, “não há uma orientação aos consórcios para que o ar-condicionado seja desligado na situação expressa no decreto”.
Assim, as empresas seguirão fazendo a utilização normal do equipamento, conforme a legislação que determina a ligação quando a temperatura supera os 24ºC.
A ATP não respondeu à reportagem quantas linhas da cidade circulam por vias de terra ou saibro.