Até 11 de abril, mais de 30 locais de Porto Alegre, entre lojas, supermercados, restaurantes e mesmo o Paço Municipal, serão ponte entre quem quer contribuir e quem precisa de ajuda. Pontos de coleta do Desafio do Tênis, estão recebendo calçados usados que serão destinados a cerca de 1,5 mil crianças e adolescentes atendidos por projetos sociais parceiros da prefeitura. A meta é arrecadar pelo menos o mesmo número de tênis até a data, quando o governo municipal recolherá as coletas, fará um balanço, e marcará o dia para a distribuição dos pares.
Calçados em bom estado, mas que por alguma razão não são mais utilizados, poderão fazer a alegria de praticantes de futebol, vôlei, tênis, hipismo e diversas outras modalidades. Desfazer-se dos pares por uma causa social também pode melhorar o dia de quem doa. Conheça histórias de pessoas que contribuíram e de crianças que estão na expectativa por um tênis.
Sem chuteira para jogar society
Mais adequado a uma caminhada, um tênis modelo esportivo faz as vezes de chuteira para o zagueiro Guilherme Ruggeri (na foto que abre a reportagem), 10 anos, nos treinos de futebol em quadra. Integrante do Projeto Esportivo Minuano, que ensina futebol a crianças de oito a adolescentes de 16 anos na zona norte de Porto Alegre, ele conta com um par de travas que a mãe, Gabrielle Ruggeri, comprou em um brechó para que pudesse realizar as práticas em campo. Mas faltaram recursos para a operadora de caixa, atualmente desempregada, comprar o modelo adequado para que o pequeno torcedor gremista possa disputar os amistosos e campeonatos de futebol society com tênis próprio — atualmente disputa partidas com calçado emprestado.
— Já me acostumei a treinar com esse, mas preferia uma chuteira — diz o menino de olhos claros e sorriso largo.
Estudante do 5º ano da Escola Jean Piaget, Guilherme participa do projeto social desde o ano passado. Ele mora com a mãe e a irmã no bairro Rubem Berta, a poucas quadras de onde ocorrem os treinos gratuitos duas vezes por semana. Não falta a um.
— Ele já gostava de jogar futebol na escola e eu quis colocá-lo em uma escolinha. Não é só o futebol: há regras, horários. Além disso, a comunidade participa do projeto, os pais fazem churrasco juntos — conta Gabrielle.
Fundado há três anos, o Minuano tem, aos poucos, mudado a cara da Praça Romeu Ritter dos Reis. Até então abandonado, o espaço passou a ser cuidado pelo projeto, que mantém o campo e instalou brinquedos no local.
— A gente tenta parcerias, mas conseguir tênis e passagem para as viagens é a parte mais difícil. De vez em quando, um empresta para o outro — diz o coordenador do projeto, Paulo Ribeiro.
Futebol é coisa de guria
Corre pelo gramado do Centro de Treinamento Progresso, em Viamão, todos os sábados, uma meia-direita apaixonada. Estudante do 7º ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, Mariane Lopes Rampanelli, 12 anos, emociona-se ao falar sobre o esporte favorito.
— Tem menino que acha que menina não joga futebol. Mas joga, sim — relata, como os olhos marejados.
Até pouco mais de um ano atrás, quando ingressou no projeto Associação Grupo Esportivo Lions, onde treina uma vez por semana, o único jeito de conseguir jogar era entre os meninos, na escola. O direito de praticar o esporte que vários colegas ainda associavam à "coisa de guri" a estimulou a levantar bandeiras. Chegou a ir para a aula vestindo uma camiseta com a imagem de Marta, craque da seleção e sua jogadora favorita, e um recado: "Meninas também jogam futebol".
O projeto social frequentado pelo filho do meio — Mariane é a caçula — foi a oportunidade encontrada pela mãe, Cristiane Bernardo Lopes, para que a torcedora gremista pudesse treinar de graça e com regularidade o esporte que tanto gosta. Moradora da Lomba do Pinheiro, a empregada doméstica providenciou chuteira em um brechó e passou a acompanhar a filha nos treinos.
— A escolinha é muito importante. Eles aprendem a ter responsabilidade, compromisso, comprometimento. Ela era meio agitada, um pouco briguenta. Agora está mais calma — conta a mãe.
O tênis de segunda mão resistiu por pouco tempo. Rasgou-se durante um treinamento meses atrás. Desde então, Mariane treina com a chuteira emprestada de um colega, um número menor que o seu pé — atualmente calça 36. A realidade é semelhante a de outras das cerca de 120 crianças e adolescentes atendidos pelo projeto. Tanto que, agradecida pelo gesto do colega, Mariane já tem planos para o caso de ser agraciada com uma chuteira no Desafio do Tênis.
— Se eu ganhar, vou emprestar também — diz.
Esporte é diversão no contraturno
Ainda associado à elite, o jogo de tênis é parte da rotina de cerca de 70 crianças e adolescentes de baixa renda que participam das aulas do Instituto do Tênis, no bairro Três Figueiras. No local, elas treinam gratuitamente de três a cinco vezes por semana, no contraturno da escola.
É o caso dos irmãos Eduardo, 11 anos, e Jhonathan, 10. Moradores do quilombo Família Silva, os dois conheceram o esporte em casa. Pai da dupla, Douglas Dutra Pacheco trabalha como auxiliar no instituto há cerca de quatro anos. Levava raquetes e bolinhas para os filhos brincarem até que o projeto social visitou a escola em que estudam, abrindo uma porta para que se inscrevessem para participar das aulas.
— Para eles, é bom. É melhor que estejam aqui, onde aprendem alguma coisa. Até porque tem que estar estudando para vir para cá — relata Douglas, que mora na Vila Caddie.
Empolgados, os guris treinam no turno inverso todos os dias, de segunda a sexta-feira, desde o ano passado. A rotina intensa exige disciplina da dupla, que precisa ir bem na escola para poder participar do projeto.
Eles dependem de auxílio externo para garantir o material necessário — somente uma raquete adequada custa em torno de R$ 800. Os tênis que atualmente utilizam para jogar vieram de uma doação feita ao instituto no fim do ano passado.
— A gente ganhou de Natal, mas só usa para competir, para não estragar. No treino, uso um que está meio rasgado — conta Eduardo.
Os irmãos quase nunca treinam juntos: enquanto um frequenta as aulas à tarde, o outro treina pela manhã. Apesar disso, o destro que admira as jogadas do espanhol Rafael Nadal tem na ponta da língua quem é seu tenista favorito.
— É o Jhonathan. Meu irmão — diz.
Alguns pontos de coleta
- Diretoria de Esporte, Recreação e Lazer (Avenida Borges de Medeiros, 2713)
- Centros Comunitários
- Ginásio Tesourinha (Avenida Erico Verissimo)
- Paço Municipal (Praça Montevidéu, 10)
- Departamento Municipal de Habitação (Avenida Princesa Isabel, 1.115)
- Chilli Beans do Bourbon Ipiranga, Bourbon Wallig, Barra Shopping, Praia de Belas e Iguatemi
- Escola de Negócios PUC (Avenida Ipiranga, 6681, prédio 50, Centro Acadêmico Visconde de Mauá)
- Supermago Central Parque (Avenida Ipiranga, 7815)
- Supermago Planalto (Rua Nicanor Luz, 110)
- Supermercado Hoffmann (Avenida João Salomani, 1397)
- Sindilojas (Rua dos Andradas,1234 - 22º andar)
- Sport Club Internacional (Avenida Padre Cacique, 891)
- Master Sul Academia (Avenida Juca Batista, 4250)
- Central de Imóveis (Rua José do Patrocínio, 385)
- Espaço Dellas (Alameda Sebastião de Brito, 147)
- CDL (Rua Senhor dos Passos, 235)
- BioSlick do Viva Open Mall (Avenida Nilo Peçanha,3228, loja 38)
- Óticas Vision (Avenida Protásio Alves, 2621)
- Restaurante Praça XV Grill (Praça XV de Novembro, 42)
- Casa Clima Aquecedores (Avenida Protásio Alves, 5247)
- Associação dos Moradores da Bela Vista (Avenida Nilo Peçanha, 1250)
- Mais informações: (51) 3289-4850 e (51) 3289-4867.
O tênis da sorte de Laura
Estampado de pequenas caveiras, o tênis tamanho 35 de Laura Parrilla Crespo, 10 anos, veio de longe para correr com ela pelas quadras do Colégio Salesiano Dom Bosco, onde a aluna do 5º ano treina handebol. Trazido da Espanha pela avó da menina, logo caiu nas graças dela: além de servir para praticar esportes, permitia que fossem acopladas rodinhas no solado, possibilitando que ela deslize com ele pela rua.
Depois de dois anos, o modelo começou a apertar o pé da pré-adolescente, que teve de adotar outro para continuar a frequentar as aulas de handebol. Descansava em um armário de casa até que soube pela mãe da campanha que arrecadaria tênis para crianças carentes. Resolveu, então, passar adiante o antigo companheiro, ao qual atribui poderes místicos.
— Era meu tênis da sorte. Acho que pode dar sorte para outra pessoa — sorri.
Mas essa não foi a única doação da estudante do Dom Bosco, cuja mãe, Luana Costa, trabalha em uma empresa que virou ponto de coleta do Desafio do Tênis na zona norte de Porto Alegre. Ela também despediu-se do modelo preferido, azul com as personagens da animação Frozen.
— Quando surgiu o ponto de coleta, todo mundo se mobilizou. Tenho duas crianças pequenas. O pé delas cresce muito rápido. Alguns estão bons quando termina o ano, mas, quando voltam às aulas, já não servem — conta a técnica administrativa.
O recomeço de Raphael
Educador físico de formação, Raphael Bertoni passou por momentos delicados em 2017. Depois de machucar o joelho jogando futebol, teve de submeter-se a uma cirurgia no ligamento cruzado que o obrigou a ficar de molho por seis meses.
Afastado da principal atividade profissional e de lazer, resolveu que investiria em um modelo de tênis novo quando fosse liberado pelo médico para voltar aos esportes. Em abril do ano passado, entrou em uma loja e escolheu o modelo tamanho 40, em azul marinho.
— Precisava de um tênis para corrida e caminhada. Pensei em comprar um que fosse bom para não me prejudicar. Esse me acompanhou até o começo de 2019. Já tinha pensado em doar, mas me apeguei porque era muito confortável — conta.
Ele viu a oportunidade de dar novo destino ao calçado quando a academia em que trabalha, na Zona Sul, virou ponto de coleta do desafio proposto pela prefeitura. Acreditava que o modelo, com significado especial, precisava de um rumo mais nobre do que a grade em frente a sua casa, onde costumava deixar sapatos e roupas que já não lhe serviam, mas podiam interessar a alguém que passasse na rua.
— Fiquei bem triste, bem deprimido por causa da cirurgia. Esse foi o tênis que me trouxe de volta. Foi um marco para o meu retorno à atividade física. Imagino que vá ajudar alguém tanto quanto me ajudou — conta o educador físico que, dias depois da primeira doação, resolveu dar mais um modelo de tênis para a campanha.
A despedida de Guilherme
Deslizar de skate pelas pistas do Parque Marinha do Brasil foi um dos principais passatempos da adolescência de Guilherme Castilhos, 20 anos. Até que um problema no quadril o colocou, em 2015, dentro de uma sala de cirurgia. Saiu de lá com dois pinos e uma orientação explícita: deveria evitar atividades físicas que pudessem ter algum tipo de impacto.
Insistiu por mais algum tempo na prática do skate até que, em 2016, decidiu obedecer à orientação médica. O modelo em preto então utilizado durante as idas ao parque vizinho a sua casa, no bairro Menino Deus, virou tênis de passeio, utilizado em saídas noturnas.
— Depois que parei de andar de skate, não usava mais tanto. Tomara que caia na mão de alguém que vá aproveitar muito — torce.
A hora de despedir-se em definitivo do modelo tamanho 44 que lembrava o esporte que teve de abandonar chegou quando soube, por uma amiga da mãe, da campanha para arrecadar tênis. A possibilidade de o calçado cair nas mãos, ou melhor, nos pés de alguém que também o utilizaria para praticar esportes empolgou Guilherme, que deixou o tênis no ponto de coleta do Paço Municipal.
— Seria legal se ele fosse para alguém que vá andar de skate. Espero que quem receber use com carinho. É resistente — diz.