
Para quem está acostumado a ver ele de guarda-pó branco, avental e boné, a elegância chama a atenção. Alto e sorridente, o homem tem a barba bem aparada, destacando o bigode. Veste camisa bem cortada, jeans escuros justos, sapatênis e relógio dourado. Ele bate-papo com atendentes do bar Josephyna’s, na Rua João Telles, no coração do Bom Fim. Do carro, desembarcam repórter e outro sujeito tão elegante quanto o primeiro: terno e gravata, óculos de acetato azul marinho contrastando com a careca lisa e alva, sua marca registrada. GaúchaZH não contou aos dois que eles seriam entrevistados juntos, e o encontro de surpresa emociona os amigos:
– Ildo!
– Nati! Como é que está?!
O quebra-costelas que segue é entre os dois garçons mais populares de Porto Alegre nas últimas décadas. Ou melhor, ex-garçons. Tanto Ildo Berté quanto Dinarte Valentini penduraram os panos de prato, recentemente, de dois estabelecimentos clássicos da Capital: a Lancheria do Parque e o Bar do Beto, respectivamente. Não é à toa que são camaradas. Além do trabalho e da aposentadoria recente, os dois têm idades parecidas – Ildo, 50 anos, Dinarte, 48 –, opiniões que por vezes se completam um na frase do outro e biografias parecidas, que pretendem transformar em livro.
A Porto Alegre deles é a dos imigrantes, a dos sujeitos afeitos a trabalho que vieram do Interior empobrecido para fazer a vida na Capital. Encontraram guarida no setor de serviços e, trabalhando atrás do balcão, estudaram e constituíram famílias. Natural de Nova Bréscia, Ildo começou na Lancheria do Parque em 1998. Disfarça os olhos cheios d’água ao contar que o fundador da Lancheria, Ivo Salton, ofereceu, meio constrangido, calça e sapato novos logo depois da sua chegada:
– Meu sapato vagabundo de borracha marcava todo o chão. Em vez de me mandar trocar, o seu Ivo me deu um novo e ainda se desculpou. Mas acho que eu fiz por merecer: logo depois ele mandou três funcionários embora porque eu dava conta e me ofereceu sociedade.
Já Dinarte veio de Doutor Ricardo (a cerca de 50 km de Lajeado) para trabalhar em uma churrascaria de Porto Alegre aos 17 anos. Foi ainda mais longevo no Bar do Beto. Ficou lá 26 anos e saiu no ano passado, no mesmo 23 de outubro em que começara em 1992, para se dedicar a um escritório de advocacia no Menino Deus. A despedida reuniu 700 pessoas, incluindo celebridades como o ex-governador Olívio Dutra. A de Ildo, em 2015, interrompeu a Osvaldo Aranha com um evento para mais de 4 mil pessoas.
Ainda rolaria um revival para substituir a licença de um colega no ano seguinte, mas Ildo agora saiu para valer. Vai matar a saudade do Bom Fim abrindo a própria lancheria na Rua João Telles, com inauguração prevista para maio. Mas bem diferente da vizinha “Lanchéra”.
– Vai ser pequeno, com pratos elaborados por mim e só até as 22h. É a regra do prédio, mas nem reclamei. Depois disso é só problema mesmo – conta Ildo.
– É verdade. A noite cansa a gente. Só sinto falta dos amigos. De vez em quando ainda vou lá filar a janta com os funcionários do Beto. Mas sabe o que é criar duas filhas sem fazer os temas de casa com elas nenhuma vez? – questiona Dinarte.
Cada um no seu estabelecimento, os dois acompanharam os ciclos de crescimento e decadência na região. Ildo coleciona histórias de ver brigas entre punks e skinheads lancheria adentro. Também lembra das batidas da polícia em que o piso ficava verde, dada a quantidade de maconha que era jogada às pressas em direção à cozinha por debaixo das mesas. Dinarte viu o Bar do Beto se transformar de boteco para restaurante de família, tamanho o apego da clientela que se negou a abandoná-lo.
Fidelidade, eles apontam, é uma das marcas da clientela porto-alegrense. O que ambos lastimam é Porto Alegre ter se tornado “um pouco mais fria” nos últimos anos, aponta Dinarte. Para variar, Ildo complementa o raciocínio:
– Naquele tempo se fazia amizade indo para o bar. Sentava tu e um amigo, vinha a amiga do amigo, ficava tua parceira também. Agora, às vezes, vemos quatro pessoas na mesma mesa e estão as quatro sozinhas nos seus celulares. Se perdeu um pouco dessa intimidade instantânea. Ih, quantas vezes eu sentei na mesa para consolar uma guria que tinha brigado com o namorado. O garçom sempre era meio…
– Psicólogo – completa Dinarte.
– Acho que o segredo do nosso sucesso é saber ler se o cliente está ou não a fim de conversa. Não é Ildo?
O amigo sinaliza que sim com a cabeça. A julgar por essa entrevista, muitos ex-clientes ainda estão. Foram inúmeras as vezes em que Ildo e Dinarte foram interrompidos para um aceno ou abraço. Até que uma menina de cabelo roxo cumprimenta os dois. Primeiro avista Ildo, depois se surpreende com Dinarte na mesma mesa:
– Olha só, que legal. Meu pai vai adorar saber que te encontrei.
– Manda um abraço pra ele… Gabriela.
A menina se afasta sorridente. Dinarte ergue as sobrancelhas orgulhoso e um pouco aliviado por acertar o nome. Mesmo longe do bar, mais uma cliente satisfeita