Entre a balbúrdia saudável que se instalou no fim da tarde deste domingo em frente à Lancheria do Parque, tradicional bar do Bom Fim, um cliente comentou com outro:
- O Ildo é uma estrela.
Ildo Berté, 46 anos, há mais de 20 "o garçom mais querido do Bom Fim", de fato estava sendo tratado como celebridade. Em um evento articulado pelo Facebook, com presença confirmada de 3 mil pessoas, a fila para a selfie estava comprida. Uns passavam à frente dos outros, mas não tinha importância: todos sabiam que Ildo teria braços para todos que quisessem lhe fazer um carinho, dizer palavras de afeto, entregar cartas, dar um beijo, desejar boa sorte.
Foi seu último dia. A partir de segunda-feira, a "lanchera" não terá mais Ildo gritando pelo xis-salada de Alice, pela Coca-Cola sem limão do Roberto, pelo combo pastel-e-cerveja de Marco ou pelo suco da Milenka, que mistura abacaxi, melão, limão e hortelã - sem açúcar. Ao identificar as preferências gastronômicas de cada cliente, o garçom de Nova Bréscia individualizava o atendimento frente à massa diversa de frequentadores do lugar.
- Aqui tem todo o tipo de público. Essa variedade toda abriu os meus olhos de guri do Interior - justifica ele, que em 1991 trocou uma cafeteria pomposa no centro de Porto Alegre, onde precisava vestir terno e gravata, pela Lancheria do Parque, onde o único uniforme exigido é um boné e um jaleco branco. Ildo se viu emocionado com o carinho das centenas de pessoas que se acumularam em frente à "lanchera". Foto: Omar Freitas / Agencia RBS Foto: Omar Freitas / Agencia RBS
Curta-metragem mostra a rotina da Lancheria do Parque, bar que virou patrimônio afetivo da Capital
É para o Interior que Ildo vai levar as histórias que colecionou ao longo das décadas de trabalho na Lancheria do Parque. Pretende ficar um tempo no sítio da família, em Viamão, antes de decidir os rumos desta próxima etapa da vida. Fazer um curso de gestão, abrir o próprio negócio e estudar inglês estão nos planos, mas a prioridade é mesmo cuidar da mulher e do filho. E descansar da rotina, sem dúvida prazerosa, mas fatigante.
PF da Lanchera: como amar um restaurante
Na página do Facebook criada para organizar a festa de despedida, um cliente lembrou da vez em que o garçom, formado no Magistério, desafiou um físico. Ao entregar uma garrafa de cerveja estupidamente gelada ao cliente, aconselhou que ele pegasse pelo gargalo, sob o risco de congelar.
- Que vai congelar o quê? Eu sou físico. Isso daí é conversa.
- Vai congelar.
Ildo parou tudo o que estava fazendo para observar o cliente virar a cerveja no copo, sem sucesso:
- Eu avisei. Tu és físico, mas eu sou garçom.
- É o que fica - resume.
Da experiência como garçom da Lancheria, Ildo concluiu que não basta "atender por atender" - quando vai concluir o raciocínio, uma jovem de 18 anos o interpela para um abraço e ele muda o rumo da conversa.
- Como tu tá linda, guria. Te peguei no colinho, parece mentira. Estuda bastante, para ver se a gente muda essa nossa sociedade.
Com seus conselhos, Ildo ensinou muita gente. Os colegas, por exemplo, aprenderam que carisma e gentileza são a base de tudo.
- A gente vai sentir - conta, com a voz embargada, outra lenda da Lancheria, o garçom Adilar Pederiva.
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- Almoçar aqui, a partir de amanhã, já vai perder um pouco a graça - afirma a estudante Mariana Atz, 23 anos, a quem Ildo conheceu quando ainda era recém-nascida (e se assustou quando, anos depois, ela apareceu na Lancheria na companhia do namorado).
Hoje, por volta das 13h, Ildo Berté pegou o ferro de passar e esticou o jaleco sobre a tábua pela última vez. Era seu último dia de trabalho, mas ele não trabalhou. Não deu tempo. Ildo passou seu último dia de trabalho inteiramente preocupado em receber afeto.
- Um dia para nunca mais esquecer.