Um porto-alegrense certamente já deparou com algum deles. Uns aparecem na TV, outros são rostos tão familiares que acenamos sem nada saber sobre eles. Na semana em que Porto Alegre completou 247 anos, GaúchaZH destaca cinco conhecidos personagens para revelar como eles se tornaram figuras da Capital. Com vocês, mais do que os primeiros nomes ou apelidos do Eduardo, do Ildo, do Dinarte, do José e da Rozeli.
A cidade que Eduardo sente
Ninguém sente Porto Alegre na pele tanto quanto ele. Indiferente às oscilações de temperatura da capital gaúcha, Eduardo André Viamonte, 48 anos, é aquele sujeito que todos os frequentadores dos bairros centrais já avistaram correndo apenas de sunga, tênis e chapéu. A cena é tão corriqueira que o músico Carlinhos Carneiro compôs uma canção descrevendo um sonho delirante em que “O Cara da Sunga aparece vestido, e sem correr”.
Fora mostrar mais pele do que o normal, Eduardo não é um cara excêntrico. Administra uma escola de inglês e trabalha na informática do Banrisul.
– Sim, vestido – esclarece com a naturalidade de quem já respondeu à piadinha mil vezes.
O striptease, conta, foi gradual. A sunga boxer substituiu o calção porque o nylon provocava assaduras nas coxas, correndo com tamanha frequência (são 20 quilômetros diários). A camiseta ele dispensou depois de perceber que correr com a roupa molhada era mais perigoso para ter uma gripe. A toca e as luvas que usa no inverno parecem deboche, mas também têm explicação.
– Cerca de 40% da temperatura do corpo se perde pelas extremidades. Às vezes está aquele friozão, o pessoal pede para me tocar e eu estou quentinho. O truque é relaxar no frio, em vez de se contrair – diz Eduardo, embora não recomende para iniciantes.
Já são 23 anos correndo pelos bairros Moinhos de Vento, Centro, Cidade Baixa e Bom Fim – onde mora hoje. Nesse período, observou a cidade se tornar, sobretudo, mais tolerante. Ao menos com ele.
– Quando comecei, paravam o carro para me chamar de gay, de veado. Como se isso fosse xingamento, aliás. Não tinha essa de ter vergonha de ser homofóbico – conta.
Virou o jogo literalmente no corpo a corpo, interagindo com o pessoal dos bares. Viu que os insultos ficaram para trás no dia em que o Bom Dia Rio Grande gravou reportagem sobre ele no inverno. Quando passou, a clientela da Rua Padre Chagas levantou para aplaudir. Participaria de inúmeras matérias desde então.
Antes de ser “O Cara da Sunga”, teve outras alcunhas: “pelado”, “Gasparzinho” (graças às aparições noturnas e à brancura do protetor solar fator 50), “francês” – Esse nunca entendi, diz – e um bem curioso:
– Os moradores de rua me chamavam de Panvel. Alguém espalhou que eu entrava pelado na farmácia da Rua 24 de Outubro porque era o dono. Passei a ter medo de um dia ser sequestrado (risos). Acho que o apelido pegou porque eles me abordavam e pediam para eu comprar lâminas de barbear quando tinham entrevista de emprego, e eu ajudava.
A amizade com os pedintes lhe salvou de uma possível surra, certa vez. Passou por um bar lotado de colorados perto da Goethe. Alheio a futebol, nem percebeu que vestia proteção azul na canela. Sua corrida ali foi interpretada como provocação gremista.
– Decidi conversar com os caras. Quando eles definiam se me batiam, moradores de rua me rodearam com pedaços de madeira nas mãos: “Ninguém encosta no professor!” Me emocionou. A noite acabou com todo mundo bebendo junto – conta.
Hoje, Eduardo “vestiu” de vez o personagem. É interrompido para selfies, toca em bandas, dá palestras sobre corrida e se tornou mestre de cerimônias – de eventos como o Casa Expandida, da Casa de Cultura Mario Quintana, um dos seus cenários prediletos de corrida:
– Vivo quase um sonho infantil. Moro em uma cidade em que todo mundo é meu amigo.
A cidade que Ildo e Dinarte servem
Para quem está acostumado a ver ele de guarda-pó branco, avental e boné, a elegância chama a atenção. Alto e sorridente, o homem tem a barba bem aparada, destacando o bigode. Veste camisa bem cortada, jeans escuros justos, sapatênis e relógio dourado. Ele bate-papo com atendentes do bar Josephyna’s, na Rua João Telles, no coração do Bom Fim. Do carro, desembarcam repórter e outro sujeito tão elegante quanto o primeiro: terno e gravata, óculos de acetato azul marinho contrastando com a careca lisa e alva, sua marca registrada. GaúchaZH não contou aos dois que eles seriam entrevistados juntos, e o encontro de surpresa emociona os amigos:
– Ildo!
– Nati! Como é que está?!
O quebra-costelas que segue é entre os dois garçons mais populares de Porto Alegre nas últimas décadas. Ou melhor, ex-garçons. Tanto Ildo Berté quanto Dinarte Valentini penduraram os panos de prato, recentemente, de dois estabelecimentos clássicos da Capital: a Lancheria do Parque e o Bar do Beto, respectivamente. Não é à toa que são camaradas. Além do trabalho e da aposentadoria recente, os dois têm idades parecidas – Ildo, 50 anos, Dinarte, 48 –, opiniões que por vezes se completam um na frase do outro e biografias parecidas, que pretendem transformar em livro.
A Porto Alegre deles é a dos imigrantes, a dos sujeitos afeitos a trabalho que vieram do Interior empobrecido para fazer a vida na Capital. Encontraram guarida no setor de serviços e, trabalhando atrás do balcão, estudaram e constituíram famílias. Natural de Nova Bréscia, Ildo começou na Lancheria do Parque em 1998. Disfarça os olhos cheios d’água ao contar que o fundador da Lancheria, Ivo Salton, ofereceu, meio constrangido, calça e sapato novos logo depois da sua chegada:
– Meu sapato vagabundo de borracha marcava todo o chão. Em vez de me mandar trocar, o seu Ivo me deu um novo e ainda se desculpou. Mas acho que eu fiz por merecer: logo depois ele mandou três funcionários embora porque eu dava conta e me ofereceu sociedade.
Já Dinarte veio de Doutor Ricardo (a cerca de 50 km de Lajeado) para trabalhar em uma churrascaria de Porto Alegre aos 17 anos. Foi ainda mais longevo no Bar do Beto. Ficou lá 26 anos e saiu no ano passado, no mesmo 23 de outubro em que começara em 1992, para se dedicar a um escritório de advocacia no Menino Deus. A despedida reuniu 700 pessoas, incluindo celebridades como o ex-governador Olívio Dutra. A de Ildo, em 2015, interrompeu a Osvaldo Aranha com um evento para mais de 4 mil pessoas.
Ainda rolaria um revival para substituir a licença de um colega no ano seguinte, mas Ildo agora saiu para valer. Vai matar a saudade do Bom Fim abrindo a própria lancheria na Rua João Telles, com inauguração prevista para maio. Mas bem diferente da vizinha “Lanchéra”.
– Vai ser pequeno, com pratos elaborados por mim e só até as 22h. É a regra do prédio, mas nem reclamei. Depois disso é só problema mesmo – conta Ildo.
– É verdade. A noite cansa a gente. Só sinto falta dos amigos. De vez em quando ainda vou lá filar a janta com os funcionários do Beto. Mas sabe o que é criar duas filhas sem fazer os temas de casa com elas nenhuma vez? – questiona Dinarte.
Cada um no seu estabelecimento, os dois acompanharam os ciclos de crescimento e decadência na região. Ildo coleciona histórias de ver brigas entre punks e skinheads lancheria adentro. Também lembra das batidas da polícia em que o piso ficava verde, dada a quantidade de maconha que era jogada às pressas em direção à cozinha por debaixo das mesas. Dinarte viu o Bar do Beto se transformar de boteco para restaurante de família, tamanho o apego da clientela que se negou a abandoná-lo.
Fidelidade, eles apontam, é uma das marcas da clientela porto-alegrense. O que ambos lastimam é Porto Alegre ter se tornado “um pouco mais fria” nos últimos anos, aponta Dinarte. Para variar, Ildo complementa o raciocínio:
– Naquele tempo se fazia amizade indo para o bar. Sentava tu e um amigo, vinha a amiga do amigo, ficava tua parceira também. Agora, às vezes, vemos quatro pessoas na mesma mesa e estão as quatro sozinhas nos seus celulares. Se perdeu um pouco dessa intimidade instantânea. Ih, quantas vezes eu sentei na mesa para consolar uma guria que tinha brigado com o namorado. O garçom sempre era meio…
– Psicólogo – completa Dinarte.
– Acho que o segredo do nosso sucesso é saber ler se o cliente está ou não a fim de conversa. Não é Ildo?
O amigo sinaliza que sim com a cabeça. A julgar por essa entrevista, muitos ex-clientes ainda estão. Foram inúmeras as vezes em que Ildo e Dinarte foram interrompidos para um aceno ou abraço. Até que uma menina de cabelo roxo cumprimenta os dois. Primeiro avista Ildo, depois se surpreende com Dinarte na mesma mesa:
– Olha só, que legal. Meu pai vai adorar saber que te encontrei.
– Manda um abraço pra ele… Gabriela.
A menina se afasta sorridente. Dinarte ergue as sobrancelhas orgulhoso e um pouco aliviado por acertar o nome. Mesmo longe do bar, mais uma cliente satisfeita
A cidade que Rozeli governa
Rozeli costumava varrer calçadas da Restinga envergonhada, de cabeça baixa. A patroa da casa em que fazia faxina, na Azenha, a convenceu de que o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) era a única alternativa de carreira para uma mulher semianalfabeta como ela. Concordou e até gostava do serviço, mas tinha vergonha de ser reconhecida como gari perto de casa. Ela lembra da primeira vez em que ergueu a cabeça. Ouviu a dona de uma ferragem chamar três crianças que faziam bagunça na frente da loja de “trombadinhas”. Doída, ergueu o boné laranja e foi tirar satisfação.
– São só crianças, qual é o problema? Sabe qual é o único problema delas? É gente que nem tu que coloca rótulo em gente como se fosse Pepsi. E tem mais: não vou limpar tua calçada.
Aos 55 anos, a presidente da ONG Renascer da Esperança conta a história de como se tornou “A Rozeli da Renascer”, às gargalhadas. Há capítulos tristes: ela mesma foi “trombadinha” e interna da Febem aos 11 anos. Aos 12, casou e engravidou. Aos 16, tinha duas filhas (hoje, são cinco). Passou por violência doméstica em dois casamentos antes de enviuvar.
A ideia da ONG veio em 1996, no dia em que ela e a amiga Learsi Kelbert, assistente social do DMLU, tiveram o mesmo sonho e interpretaram como um sinal divino. Estavam juntas e rodeadas de crianças. Decidiram concretizá-lo. Sua história estourou depois de Rozeli ter as comidas para a ONG furtadas e alguém contatar a RBS TV. O caso de uma gari que tentava fundar uma organização (e ainda por cima ser roubada e não desistir) despertou comoção potencializada pelo carisma da protagonista. A partir do episódio, ela conseguiu alguns dos patrocinadores que mantém até hoje.
Se tornou personagem curiosa: mantinha a ONG de dia, varria as principais avenidas da Zona Sul incógnita, à noite, e estudava no tempo que restava. Se aposentou do DMLU em 2018 e só uma vez foi reconhecida enquanto varria:
– Um carro parou na Cavalhada, uma pessoa desceu, disse que conhecia a minha história e me entregou um buquê de flores. Fiquei tão atordoada que nem perguntei de onde ela tirou aquilo.
Enquanto isso, a Renascer tomou conta de um terreno de 700 metros quadrados onde são atendidas 300 crianças e adolescentes até 15 anos.
– Não vou te mentir. O segredo foi a mídia. Nada impulsiona mais que a TV. Virei celebridade, fui em tudo que é programa, dei depoimento em novela – conta.
Um pouco por galhofa, Rozeli passeia nas ruas da Restinga como prefeita. Trata o bairro como município à parte, com mais de 50 mil habitantes. Beija crianças, acena aos vizinhos que assobiam durante as fotos para esta reportagem. Outros, sérios, a abordam com questões de família.
– É algo das comunidades pobres de Porto Alegre. Se tu vai na Cruzeiro, é assim. Na Vila Pinto, igualzinho. Tem uma Rozeli em cada lugar. A gente se protege e se governa – revela.
A cidade que José perfuma
Uma máxima atribuída a Benjamin Franklin diz que nada é certo na vida, exceto a morte e os impostos. Se vivesse na Porto Alegre do século 21 em vez dos Estados Unidos do século 18, o político poderia incluir um terceiro item à lista. Nada é certo na vida, exceto a morte, impostos e – em determinado momento da noite, na Cidade Baixa – encontrar o peruano Jose Martinez (foto) com uma sacola de incensos e um portunhol veloz debaixo do sorriso:
– Hola, já nos vimos hoy?
De domingo a domingo, Jose toma sopa, deixa o apartamento de um quarto alugado na Duque de Caxias, pontualmente às 21h20min, e pega um ônibus até a Avenida Loureiro da Silva. Começa pelo Espaço Cultural 512 um périplo que só muda conforme os horários dos bares pelas ruas João Alfredo, República, José do Patrocínio e Lima e Silva. Sai com uma meta de arrecadação e só retorna com ela no bolso. A variável é a sola de sapato consumida.
– Tem segundas-feiras chuvosas em que saio desanimado, com los pies molhados e vendo uma loucura. E tem sextas-feiras que custo a vender algo.
Entonces, em 30 anos, só aprendi que não posso escolher dias – conta.
Jose reclama de cansaço, artrose, ciático e falta de sol, mas o bate-pernas diário deixou o peruano com um físico inacreditável aos 63 anos. Sua história é longa e começa com a fuga da violência do grupo narcoterrorista Sendero Luminoso, na década de 1980. Aos 27 anos, Jose deixou pais e quatro irmãos em Lima para tentar a vida no Chile, Argentina e, finalmente, no Brasil em 1989. Em 1996, obteve permissão de residência permanente. E por que Porto Alegre?
– Tentei trabalhar um verão em Florianópolis, mas não vendi nada. La gente compra incenso para disfarçar a maconha, mas na praia eles nem disfarçam (risos). Tentei o Rio, mas as distâncias eram muy longas. La Gáááávea, Botafoooogo, Ipaneeeema – lista Jose, revirando os olhos, enfadado.
Na capital gaúcha, encontrou bares próximos uns dos outros e clientes fãs de produtos exotéricos. De início, vendia incensos argentinos, mas aprendeu uma receita (secreta) com ingredientes naturais, o que os tornaria mais suaves e hipoalergênicos. Depois, os colore e perfuma conforme os Sete Raios Sagrados, uma ordem mística em que cada dia tem uma cor e um padroeiro correspondente. Em casa, tem um quadro para cada um e dedica a eles um incenso por dia.
– Só não sinto mais o cheiro, pois me acostumei. Sei que está perfumado quando uma visita comenta.
Não são muitas. Depois de passar o dia abordando pessoas, José não gosta muito de ser incomodado. Casou para tentar um visto na década de 1990, mas não gosta nem de falar da experiência de quatro meses. Fez amizades, mas nunca voltou a morar com alguém. Prefere passar o tempo livre solitário, lendo, se exercitando com pesos leves e estudando doutrina espírita. Vagar pela Cidade Baixa diariamente, julga ser um “karma de outra vida” pelo qual tem de passar.
– Já me gustó mais a cidade e o bairro. La gente ia para os bares para sentar, debater, construir ideias. Desde 2013, 2014 é sacola de plástico, sujeira, gritaria... – avalia.
Embora seja reconhecido “todo el tiempo” e peçam-lhe incensos do banco ao aeroporto, Jose é o único personagem dessa reportagem que nunca havia dado entrevistas. Talvez por isso, se despeça com um abraço acanhado, mas sincero.
– Gracias, amigo. Obrigado por ter reparado em mim.