Assim como o poetinha, lamento não poder andar por todas as ruas de Porto Alegre. Mas sinto uma dor também por aquelas onde passo apressada, sem reparar em nada, no bonito e no feio, no renovado e no decadente. Por isso, espantei a preguiça, no primeiro sábado do mês, depois de anos me restringindo a divulgar as atividades do Free Walk Poa, e resolvi me juntar ao grupo numa caminhada pelo Centro Histórico. Guardei o relato destas páginas para este dia que celebra os 247 anos da cidade (e me dando conta de que faz 35 anos que vivo nela!).
Fazia quase 30ºC no final da manhã de sábado de Carnaval e eu, me achando “a corajosa”, pensei que poderia ser a única a estar lá no horário marcado, 11h, ao lado do Chalé da Praça XV, no Centro Histórico. Confesso que pensei em me enfiar em algum lugar com ar-condicionado e deixar a empreitada para o inverno, até chegar e dar de cara com aquela pequena multidão em volta do Bernardo e do Max, nossos guias.
Calculei umas 50 pessoas e elas pareciam mais quando se espraiaram pelo Largo Glênio Peres, aceitando o convite dos guias para segui-los e entrar no Mercado Público, a primeira parada. Como um dos temas era a fatídica enchente de 1941, primeiro eles mostraram a placa que registra a altura atingida pela água naquele ano, uma das maiores provações sofridas por nosso combalido Mercado.
Depois, seguimos para o centro da construção para ouvir a história sobre o orixá Bará, entidade que, segundo a concepção das religiões africanas, é a responsável pela abertura dos caminhos e pela fartura. Diz a tradição que este orixá do Mercado teria sido assentado, na forma de uma pedra, por negros que construíram o prédio 149 anos atrás. Ou, então, poderia ser obra do Príncipe Custódio, líder religioso vindo da África, instalado na cidade após abdicar de tudo na terra natal. Ouvindo atentos, formamos um círculo fechado em torno do cruzeiro central. De repente, alguém pede passagem: a roda se abre e a pessoa joga uma moeda. Uma oferenda para o Bará que funcionou como uma senha para irmos adiante.
Já rumando à saída do Mercado, paramos para ouvir um pouco sobre dois dos mais antigos restaurantes da cidade: o Naval e o Gambrinus. E mais histórias sobre o quanto Bob Dylan, o músico ganhador até de Nobel, apaixonou-se pela bomba royal quando conheceu a Banca 40, numa das vezes em que fez show na cidade. Meio esquisito só ouvir as histórias e não entrar em dois lugares que eu frequento bastante. Deu aquela sensação de “olhar de marciano”, sabe? E foi ali que fui interpelada por uma mulher – a primeira de muitas interrupções do gênero no passeio –, curiosa em descobrir quem éramos nós. Ficou surpresa ao saber que não se tratava de uma “excursão”, mas que muitos do grupo eram porto-alegrenses mesmo, mas havia também gente do Paraná, de Santa Catarina, de São Paulo, de Minas, de Goiás e até cariocas entre nós, em pleno Carnaval. Feliz com a ideia, ela foi adiante com suas compras prometendo que um dia também faria o roteiro.
Antes de voltar para a rua, ganhamos uma provinha de cachaça gaúcha da Cachaçaria do Mercado. Um aperitivo para o que viria a seguir: o antigo abrigo dos bondes, ali na outra ponta do Largo, onde ficava o primeiro “arranha-céu” da cidade, o Edifício Malakoff, concluído em 1860 e que tinha QUATRO andares (para localizá-lo, é onde hoje está o Edifício Delapieve). Já na Rua da Praia (ou Andradas, como preferir), uma parada em frente à antiga Livraria do Globo e à Galeria Chaves para ouvir mais histórias. Sabe uma que eu já tinha ouvido e da qual não me lembrava? A de que na Galeria Chaves, a mais antiga do Estado, de 1930, o ex-governador Leonel Brizola chegou a trabalhar como ascensorista. Não entramos ali, um dos meus lugares favoritos na cidade. É que o feriado deixou tudo mais ou menos fechado. Pena para quem não é daqui e talvez não retorne. Nossos guias aproveitam para se demorar um pouco mais com curiosidades sobre a Globo e seus expoentes, como o escritor Erico Verissimo e Mario Quintana, o poetinha lá do início do texto.
E seguimos Rua da Praia abaixo, causando um certo espanto em quem via aquela tripa de gente sob o sol escaldante. O feriado também deixou mais espaço no calçadão, normalmente (e de novo) ocupado por camelôs.
Paramos então na Praça da Alfândega, uma das minhas preferidas, e que só tem esse nome desde 1979 (antes, era Senador Florêncio). Em volta da estátua do General Osório, ouvimos mais curiosidades, boa parte delas sobre a chegada do cinema a Porto Alegre, um ano depois de sua invenção, em 1895. Foi na praça, a céu aberto, que os porto-alegrenses assistiram aos 42 segundos de A Chegada de um Trem à Estação. Depois, o primeiro cinema, com meia-entrada e tudo, surgiria ali na frente da praça. Ah, e Max e Bernardo, nossos guias, chamam a atenção para uma marca no chão da praça que identifica o Museu de Percurso do Negro. Por que eu nunca tinha reparado?
Vamos adiante, que o sol está mais a pino. E há quem afirme, ao nos ver passar torrando no verão porto-alegrense, que somos estrangeiros rumo à nova orla do Guaíba e não nos importamos com o sol. Viramos atração até finalmente chegar ao final do percurso, a Casa de Cultura Mario Quintana.
A construção rosada, com entrada pela Rua da Praia e pela Sete de Setembro, uma das últimas moradas do poetinha, aquele mesmo do início do texto, é o fim do nosso passeio. Achei que o grupo iria se dissolver, mas, não. Estamos todos ali. Bernardo e Max nos falam menos do prédio e mais do poeta (Eles passarão, eu passarinho!). E o pessoal não arreda pé, pergunta mais. Duas horas de caminhada e o pessoal disposto. Que bom. O último ato é uma foto coletiva. Só depois, com a imagem postada no Facebook do projeto, fui contar melhor: éramos mais de 60. Max e Bernardo aceitam contribuições espontâneas por sua tarefa. Vendem a R$ 20 o livro publicado em 2012 por meio de uma vaquinha virtual, no qual constam muitas das dicas do passeio. E camisetas. E é isso. Voltarão no próximo sábado, para esse e outros roteiros, por outros pontos da cidade. São pessoas como eles que tornam Porto Alegre mais viva nesses 247 anos.
Para fazer o passeio
Sai todos os sábados, às 11h, em frente ao Mercado Público.
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