Marcelo Saliba vive um luto solitário e burocrático. Ainda não teve coragem de encarar milhares de fotos e vídeos divididos em dois pendrives de 15 gigabytes, onde estão os dados do celular e do computador de Débora Saliba, a irmã ciclista de 42 anos que morreu atropelada há dois meses pedalando em um sábado de manhã rumo ao trabalho, na zona sul de Porto Alegre. O condutor fugiu do local sem prestar socorro. Marcelo também reluta em dar o material aos sobrinhos, o casal de filhos de Débora, de 17 e 21 anos.
– Farei isso depois. Não quero ficar sem nenhuma lembrança da minha irmã – declara.
Segundo Marcelo, embora Débora estivesse sempre rodeada de amigos das pedaladas, seu núcleo familiar era pequeno. Restou a ele os trâmites do falecimento e a falta da parceria.
— Na hora da comoção, muita gente aparece para prestar solidariedade. Para oferecer ajuda. Mas depois a coisa fica mais dura. As pessoas me dizem que o tempo vai ajudar, mas, no meu caso, só piora. Quanto mais tempo, mais saudade eu tenho dela e pior eu me sinto – declara Marcelo, agora envolvido com a ideia de batizar uma ciclovia com o nome de Débora.
Na quarta-feira, quando conversou com Zero Hora, ele tinha pela primeira vez em mãos o laudo do acidente. Em termos técnicos, explica que Débora morreu instantemente ao ser atingida pelo Corsa Sedan na Avenida Cavalhada. O choque violento causou uma lesão da têmpora direita até o osso da nuca (occipital), causando forte sangramento. O irmão não quis ler detalhes. Para ele, no momento, o mais importante é o dado que consta na página seguinte, que Débora não estava sob efeito de álcool ou outras drogas. Uma obviedade, mas fundamental para receber o dinheiro do seguro de vida da loja em que ela trabalhava.
Do laudo em si, só me importava saber que ela não sofreu. Sobre o motorista que a atropelou, antes de qualquer julgamento sobre ele, eu só queria saber a verdade
MARCELO SALIBA
Irmão de ciclista atropelada
– Do laudo em si, só me importa saber o que a inspetora (da Polícia Civil) me disse, que ela não sofreu. Sobre o motorista que a atropelou, antes de qualquer julgamento, eu só queria saber a verdade – conta Marcelo.
A verdade terá de ser interpretada a partir do inquérito policial prestes a ser finalizado pela Delegacia de Homicídios de Trânsito de Porto Alegre – o documento deve ser encaminhado à Justiça nos primeiros dias de 2019. Segundo o delegado Gabriel Bicca, só resta anexar ao documento os laudos toxicológicos do motorista, mas a polícia já sabe de antemão que eles deram negativo. O motorista é um homem de 30 anos sem antecedentes que se apresentou à polícia na segunda-feira seguinte ao atropelamento na companhia do advogado Jefferson de Freitas Farias. Antes, por volta das 18h de sábado, ele havia registrado uma falsa ocorrência de furto do veículo.
— A primeira coisa que eu aconselhei ele a fazer foi desmentir essa história — declara Jefferson.
Conforme Jefferson, o cliente atribui o acidente a um mal súbito em razão de um medicamento. O motorista contou ao advogado que havia trabalhado como Uber na noite de sexta-feira e dormido a 1h na casa da ex-namorada, com quem tentava se reconciliar, em Alvorada. Naquela manhã, voltava para casa cedo pois trabalharia ainda no sábado, como cobrador de ônibus. A apuração apontou desgaste nas condições do carro, mas nada sério. A velocidade não foi possível de ser precisada.
Vai contra a versão do mal súbito do motorista a sua manobra no momento do atropelamento. Aparentemente, conforme a polícia, sua intenção era tomar a pista da direita para ultrapassar veículos à frente. Ao fazê-lo, acertou Débora – que trafegava próxima ao meio-fio – em cheio e subiu no cordão da calçada.
– Mal súbito é algo que ele não tem como provar e nós não temos como desmentir com 100% de certeza, embora a movimentação de uma pessoa que está se sentindo mal seja presumivelmente diferente. De qualquer modo, seria obrigação dele estar em condições físicas de dirigir – declara Bicca.
O motorista deverá responder por homicídio culposo de trânsito – com pena prevista de cinco a oito anos de reclusão –, omissão de socorro – que prevê detenção de um a seis meses ou multa – e falsa comunicação de crime, cuja pena é de detenção de um a seis meses ou multa conforme o Código Penal.
A reportagem de ZH esteve no endereço do motorista, a um quilômetro do acidente, mas foi informada de que ele se mudou para Alvorada logo após o atropelamento. Há cerca de um mês, o advogado diz ter perdido contato com seu cliente. Ele não estaria atendendo mais ao telefone e, no WhatsApp, aparece uma foto de outra pessoa.
– Imagino que ele não conte mais comigo – declara Jefferson.