Criado em 1995 para coibir qualquer tipo de discriminação - racial, sexual, de gênero ou por deficiência, por exemplo - em estabelecimentos comerciais, o Artigo 150 da Lei Orgânica de Porto Alegre teve apenas 55 multas aplicadas desde sua regulamentação, em 1996, até hoje. O baixo número poderia mostrar que episódios de discriminação são raros na Capital, mas não é o caso: só em 2018, o Disque-Denúncia da cidade já atendeu 205 vítimas. Entre as explicações de ativistas e funcionários públicos para a rara aplicação da lei estão a falta de divulgação do Artigo 150 e a burocracia que afasta vítimas da busca por direitos.
— É um processo burocrático, lento, que precisa de testemunha. Às vezes, a pessoa até tem medo de precisar ir a delegacia e expor o seu constrangimento novamente. Não há essa cultura de denunciar — acredita Jacqueline Kalakun, diretora de Direitos Humanos da prefeitura de Porto Alegre.
Só três capitais brasileiras têm normas na Lei Orgânica para coibir atos de discriminação em estabelecimentos comerciais: além de Porto Alegre, São Luiz (MA) e Belo Horizonte (MG). Na capital gaúcha, quem descumprir o Artigo 150 da Lei Orgânica do Município pode ser multado ou ter o alvará de funcionamento cassado. Porém, o poder público tem problemas para colocar em prática a regra: há anos de informações desaparecidas, registros conflitantes e processos que ficaram engavetados por muito tempo até serem arquivados.
Duas secretarias da prefeitura se envolvem quando há uma denúncia de discriminação. A pasta de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE) faz o registro e abre um processo administrativo. Depois, envia esse relato para o Desenvolvimento Econômico (SMDE), que fiscaliza e autua os estabelecimentos responsáveis.
As informações não são centralizadas. No primeiro pedido de GaúchaZH, a prefeitura informou que só dois estabelecimentos haviam sido enquadrados em 22 anos. Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem descobriu que, na verdade, foram abertos 44 processos administrativos de 2003 até o momento - há casos tramitando desde então e metade deles já está arquivada. O Centro Municipal de Referência em Direitos Humanos, responsável por receber as denúncias das vítimas, não tem nenhum registro sobre o Artigo 150 entre 1996 e 2002 - ou seja, há um limbo de ocorrências relatadas de seis anos. Segundo a coordenadora do centro, Maria Helena Castilhos, isso ocorre porque as denúncias começaram a ser centralizadas só depois da criação do espaço, em agosto de 2004.
— Antes disso, até tem alguns processos perdidos por aí porque a gente vai catando, mas não tenho ciência - esclarece Maria. — Estou fazendo um mapeamento desde 2010 para descobrir onde estão os mais antigos.
Processos engavetados e dados que não batem
GaúchaZH teve acesso aos 22 processos arquivados pela administração municipal. Pelo menos 10 "caducaram": foram arquivados após passarem anos sem movimentação na antiga Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic), hoje uma diretoria na SMDE.
Maria Helena reconhece que estes processos físicos podem ter sido "perdidos ou esquecidos" porque não havia um controle tão apurado. Hoje, diz, esse tipo de falha tende a diminuir, pois as ações passaram a ser digitais em 2016 por meio do Sistema Eletrônico de Informações (SEI) da prefeitura.
— Antigamente, com os documentos físicos, tinha horrores de processos perdidos. O sistema era muito falho. Era fácil de engavetar e ficava ali. Não quero justificar, mas tem muita tendência a ter problema — afirma Maria.
O Desenvolvimento Econômico discorda de que hajam arquivos perdidos ou deixados de lado, embora não saiba explicar os processos sem movimentação verificados pela reportagem.
— Toda informação que chega na secretaria é averiguada, não existe nada engavetado. Não há essa possibilidade — reluta o diretor de Promoção Econômica da pasta, Luís Antonio Steiglich.
Conforme a SMDE, durante os 22 anos de vigência do artigo, 55 multas e uma notificação foram aplicadas. Essas infrações já renderam R$ 103 mil aos cofres públicos. Os relatórios do setor, porém, não contêm os nomes e os endereços dos locais autuados, o que coloca em dúvida a eficácia da aplicação das multas em caso de reincidência - na primeira autuação, o estabelecimento deve pagar 500 UFMs (R$ 2.007,25); na segunda, a multa dobra para mil UFMs (R$ 4.014,50); na terceira, o alvará de funcionamento do local é suspenso por 30 dias.
Menos burocracia e mais divulgação são apontadas como saídas
Para tornar a lei mais eficaz, prefeitura e ativistas concordam sobre a necessidade de rediscutir a lei e disseminá-la entre comerciantes e seus clientes. O próprio poder público, que recebe as denúncias e fiscaliza os supostos agressores, reconhece que tem uma árdua tarefa nas mãos. Coordenadora do Centro Municipal de Referência em Direitos Humanos, Maria Helena Castilhos afirma que está procurando arquivos perdidos para fazer um levantamento a respeito da eficácia do Artigo 150. Com o relatório em mãos, ela acredita que poderá reconhecer as falhas do município, projetar campanhas de divulgação e ser transparente à população:
— Eu estou pegando os processos um por um para descobrir quais foram autuados ou não, se foram bancos, bares, lojas. Esses dados estão todos descentralizados entre várias secretárias.
Na opinião do coordenador-geral da ONG Somos, Gabriel Galli, a baixa aplicação do artigo e a desorganização ocorrem por "má-vontade política, e não por falha da administração". A burocratização também estaria afastando as vítimas de violência a levarem suas denúncias e processos para frente — há processos tramitando desde 2003, por exemplo.
— Tem bares, por exemplo, que sempre recebem denúncias de casos de LGBTfobia, mas nunca vai pra frente. A ideia é que ninguém vai ser punido, há uma sensação de desemparo — expõe o ativista.
Para o procurador do Estado e coordenador da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos da OAB, Jorge Terra, um dos pontos que precisam ser reconsiderados no texto é a obrigatoriedade do boletim de ocorrência. Além disso, as ações de fiscalização da prefeitura precisariam ser repensadas. Conforme observado por GaúchaZH, há processos que foram arquivados porque não tiveram movimentação na antiga Smic.
— A intenção foi muito boa em 1995, quando o Artigo 150 foi criado, mas é preciso detalhar o texto para torná-lo mais eficaz — afirma. — Hoje, se você sofre uma violência, conta para os amigos e posta no Facebook. Que valor tem isso?
A necessidade do boletim de ocorrência é questionada pela própria polícia. O delegado Francisco Antoniuk, da 2ª Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento de Porto Alegre, considera a obrigação um "outro constrangimento" que a vítima precisa passar.
— Se a pessoa não quer que o estabelecimento faça aquilo de novo com mais ninguém, ela não tem escolha: é obrigada a passar pelo criminal. Já que é administrativo, não precisava dessa obrigação — diz o delegado. — Mesmo assim, as delegacias estão preparadas para receber pessoas fragilizadas por atos de violência.
O que inclui o Artigo 150
Multa ou cassação de alvará para estabelecimentos que discriminem por:
- raça
- gênero
- orientação sexual, étnica ou religiosa;
- em razão de nascimento
- de idade
- de estado civil
- de trabalho rural ou urbano
- de filosofia ou convicção política
- de deficiência física, imunológica, sensorial ou mental
- de cumprimento de pena
- cor ou em razão de qualquer particularidade ou condição
A maioria dos processos ocorreram por LGBTfobia e está concentrada no Centro Histórico. Os relatos vão de insultos verbais a agressões físicas: em um deles, homossexuais descrevem agressões por seguranças de um shopping com “socos, pontapés, cabos de vassoura, cintos e panos molhados”. Em outros, negros afirmam terem sido “perseguidos” por gerentes e seguranças de lojas e supermercados, sob a suspeita de que iriam furtar produtos. Há até uma idosa dizendo ter sido agredida verbalmente e humilhada dentro de um ônibus.
Como tramitam os processos
As denúncias protocoladas por meio do Artigo 150 da Lei Orgânica do Município passam por três etapas:
1. A vítima precisa ir até uma delegacia e registrar um boletim de ocorrência. É preciso indicar provas para corroborar o relato, como testemunhas, gravações ou documentos. Em caso de agressão física, a vítima fará um Exame de Corpo de Delito; por isso, ela não pode se lavar nem trocar de roupa.
2. Com o boletim em mãos, ela precisa ir à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte, que fica na Rua dos Andradas, 1.643, no centro de Porto Alegre. Ela será atendida no Centro Municipal de Referência em Direitos Humanos - parceria da prefeitura com o governo federal que orienta e recebe denúncias de vítimas de violência e discriminação. Abre-se um processo administrativo na prefeitura.
3. A ação é encaminhada à assessoria jurídica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico para análise; depois, fica sob responsabilidade da Divisão de Fiscalização de Atividades Localizadas. O réu é notificado e pode apresentar defesa em até duas instâncias: o primeiro recurso passa por uma comissão judicante com um procurador-geral do município e três agentes de fiscalização; o segundo é analisado pelo próprio secretário da pasta, que fará a decisão final.
- Primeira autuação: multa de de 500 UFMs (R$ 2.007,25)
- Segunda autuação: multa de mil UFMs (R$ 4.014,50)
- Terceira autuação: alvará de funcionamento suspenso por 30 dias