Depois do escândalo que levou ao afastamento judicial do presidente da Câmara de Vereadores de Guaíba, Renan dos Santos Pereira (PTB), investigado pelo Ministério Público (MP) por fraude em licitações, furar a fila de agendamento de pacientes do SUS e exercício ilegal da profissão, contratos da prefeitura da cidade estão sob investigação.
Gestores do município estão na mira do MP e do Tribunal de Contas do Estado (TCE), suspeitos de envolvimento em combinação de preços e prorrogações indevidas de contratos emergenciais. Segundo o portal da transparência da prefeitura, em 2017, foram celebrados 20 contratos com dispensa de licitação, a maioria sob alegação de urgência. Somente para seis prestadoras de serviços das áreas de educação, saúde e assistência social, foram pagos R$ 10,2 milhões.
Deflagrada em abril, a Operação Interposto, do MP, levou ao afastamento dos secretários municipais Leandro Jardim, de Administração, Finanças e Recursos Humanos, e Itamar José da Costa, de Saúde, além de seis integrantes da comissão de licitações. Na semana passada, uma CPI foi instalada na Câmara de Vereadores para apurar o caso.
Um dos contratos que chamam atenção é com a BRP Soluções Corporativas Eireli, que pertence a Júnior César Biondo. A empresa foi contratada emergencialmente em 31 de março de 2017 para serviços de recepção, higienização e limpeza para a Secretaria de Saúde. O custo era de R$ 183.318,66 por mês, durante 180 dias. Apesar de a então procuradora-geral do município, Karina Asmar, alertar três vezes sobre a impossibilidade de prorrogar contratos emergenciais, o prefeito José Sperotto (PTB) assinou quatro prorrogações, pelo menos três delas atendendo a pedidos do então secretário de Saúde, Itamar José da Costa.
Conforme o MP, o secretário e Biondo tinham relações próximas e combinariam antecipadamente preços para serviços terceirizados. Após a primeira prorrogação do contrato, a prefeitura publicou edital para um pregão. O valor máximo oferecido, porém, estava abaixo do que Biondo recebia, e ele se queixou para Itamar. Resultado: o pregão foi suspenso e a BRP seguiu prestando serviço emergencial.
A investigação do MP também revela que Biondo e Itamar negociaram previamente o valor a ser cobrado pela terceirização de Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) em Guaíba. Os dois se empenharam em ajudar o Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde (Gamp) a se habilitar à chamada pública da prefeitura lançada em setembro de 2017. O município pagaria até R$ 238.519 mensais pelo serviço, por um ano. Em telefonema gravado pelo MP, no dia da apresentação das propostas, Biondo discutiu com Itamar sobre qual seria a melhor oferta. O secretário deu a dica:
— 223 era o número mágico.
Única presença na chamada pública, o Gamp ofertou R$ 224.250 por mês, o que foi aceito. A empresa chegou a ser declarada inabilitada, pois não apresentou atestado de capacidade técnica, mas o secretário voltou a interceder. Emitiu uma certidão informando que o Gamp tinha experiência, e o prefeito Sperotto acatou. O contrato foi assinado em novembro, mas rompido pela prefeitura em 25 de junho sob o argumento de que foram "observadas inconsistências". A empresa contratada para substituir o Gamp cobrava cerca de R$ 30 mil a menos.
Conversas grampeadas
Com autorização judicial, o MP gravou conversas por telefone entre o ex-secretário de Saúde Itamar José da Costa e o dono da BRP Soluções Corporativas Eireli, Júnior César Biondo.
"Número mágico"
Em setembro de 2017, Guaíba faz chamamento público para o Samu, com o valor máximo de R$ 238.519 mensais. No dia da abertura dos envelopes (18/10), Biondo, segundo a investigação agindo em nome do Gamp (embora não faça parte da empresa), fala com Itamar sobre qual deve ser a proposta.
230 tu consegue?
O limite que eu chego, acho que é uns 225 (...). Acho que vou ter de revogar a licitação. Senão, depois, o meu problema é o TCE, né, eles não vão entender.
Não revoga ainda, calma. Vamos achar esse número aí, tá?
223 era o número mágico.
Em novembro, o Gamp, único interessado no serviço, foi contratado por R$ 224.250. Em junho, a prefeitura rompeu com a empresa sob a alegação de inconsistências contratuais.
Valor desagrada e pregão é suspenso
Em março de 2017, a BRP obteve contrato emergencial para serviços em Guaíba. O valor: R$ 183.318,66 por mês. Em setembro de 2017, a diretoria de licitações lançou um pregão para a contratação de uma empresa por concorrência. Estipulou um valor menor: de até R$ 172.458,47 mensais. Isso desagradou ao dono da BRP, Júnior César Biondo.
Quase chorei, meu secretário, quase chorei (risos).
Ou se entra com impugnação, ou a gente publica uma errata.
Em 24 de outubro, Itamar falou com Biondo e avisou que conversaria com o secretário de Administração, Leandro Jardim. Hoje, Jardim também está afastado.
Marquei com o Leandro amanhã de manhã, às 9h, na prefeitura.
Foram cinco telefonemas entre Itamar e Biondo ao longo de cinco dias. Em 26 de outubro, o pregão presencial foi revogado, sob a alegação de que deveria ser um pregão eletrônico, realizado em novembro e que resultou na contratação de outras quatro empresas a partir de abril. Neste meio-tempo, a BRP seguiu prestando o serviço amparada em quatro prorrogações do contrato emergencial.
CONTRAPONTOS
O que diz a prefeitura de Guaíba
Por meio da assessoria de comunicação, a prefeitura de Guaíba justificou a prorrogação de contratos emergenciais sob o argumento de que a paralisação dos serviços "ocasionaria claro prejuízo à população". No caso da contratação da BRP, informou que os aditivos (renovações do contrato) foram realizados durante o curso de pregões e que o processo entre o resultado das empresas vencedoras e a assinatura do contrato se estendeu por cerca de quatro meses, por causa de questões legais, envolvendo recursos e pedidos de impugnação.
Em relação ao acerto prévio de preços em contratos entre o ex-secretário de Saúde Itamar José da Costa e o empresário Júnior César Biondo, a prefeitura informou que teve conhecimento da investigação por meio do mandado de intimação em 26 de abril, e se colocou à disposição para colaborar para o esclarecimentos dos fatos o mais breve possível.
O que diz o Gamp
"O Gamp não tem qualquer ligação com Júnior César Biondo. O contato com sua empresa se restringiu à relação de prestação de serviços. Qualquer negociação realizada pelo empresário com o secretário de Saúde de Guaíba não é de conhecimento do Grupo Gamp.
A organização manifestou interesse na gestão do Samu de Guaíba em função de que, na época, fazia também a gestão do Pronto-Atendimento da cidade. O Grupo Gamp participou então de pregão presencial e apresentou lance para prestar o serviço. Após a oferta inicial, a comissão de licitação solicitou que fossem feitos novos lances, com menor valor. O Grupo Gamp procedeu desta forma, até que foi dado o lance com o mínimo valor possível para operar o serviço.
A respeito do fim do contrato, a organização destaca que foi uma decisão tomada de comum acordo com a prefeitura de Guaíba e reitera que o único motivo para a rescisão contratual foi o atraso no repasse de recursos, o que comprometeu a manutenção da prestação dos serviços."
O que diz o advogado Felipe Giacomolli, defensor de Itamar José da Costa
"Informo que o mesmo exerceu o cargo de secretário da Saúde de Guaíba apenas durante o período de janeiro de 2017 a abril de 2018, sempre de forma moral, honesta e legal, visando não só o aprimoramento da saúde do município de Guaíba como também à plena satisfação do cidadão guaibense. Suas ações enquanto servidor público foram sempre em benefício dos cidadãos de Guaíba. Quem conhece o sr. Itamar é testemunha de sua probidade e integridade. Em relação aos fatos ainda em apuração, informo que o sr. Itamar já prestou depoimento sobre parte deles, no dia 6 de junho deste ano, perante CPI instaurada pela Câmara de Vereadores de Guaíba, e permanece a inteira disposição das autoridades competentes para todos os esclarecimentos que se fizerem necessários."
O que diz o advogado Guilherme de Mattos Fontes, defensor de Júnior César Biondo
"Os contratos firmados pela BRP com a prefeitura de Guaíba foram absolutamente lícitos, regulares e o serviço efetivamente prestado. A empresa não teve — ao longo do contrato e até o presente momento — acesso a documentos internos da prefeitura. A avaliação sobre os contratos está sob a análise do Ministério Público, que, certamente, chegará à conclusão pela regularidade da prestação de serviço e ausência de qualquer conduta irregular/ilícita por parte da BRP.
A empresa, por seus sócios ou prepostos, nunca travou qualquer espécie de diálogo acerca de irregularidades ou 'acertos' ilícitos. De qualquer sorte, eventuais diálogos interceptados devem ser lidos de acordo com todo o contexto em que inseridos, de onde se verá, sem margem pra dúvidas, a ausência de qualquer conduta irregular por parte da BRP. O caso ainda pende de aprofundamento das investigações, de onde se verificará a ausência de qualquer conduta ilícita por parte da empresa ou seus prepostos."
O que diz o advogado Heitor de Abreu Oliveira, defensor de Leandro Jardim
"Ele (Leandro) não teve participação em nenhuma tratativa em processo licitatório para beneficiar qualquer empresa. No processo (investigação do MP), não tem elementos que o vinculem a irregularidades. Nos grampos telefônicos, não tem ligação entre o secretário Leandro Jardim e o secretário Itamar."